Corri
escada acima tão velozmente que, mesmo tropeçando três vezes nos degraus, não
me dei o luxo de cair. Eu me curvei um pouco, a princípio de maneira
involuntária, depois para tentar esconder-me tanto quanto fosse possível por
detrás do corrimão. Dorota atirava sem piedade, mas por sorte, sua mira era
terrivelmente ruim. Os tiros passavam a seguros centímetros de distância.
Disparei
para o segundo andar da mansão, tomando o cuidado de correr diretamente para o
lado oposto da enorme sala, depois de localizar – em uma fração de segundos – o
interruptor. O ambiente escureceu-se de súbito; e eu fique cego por alguns
instantes, antes de me acostumar com a pouca luz. O fogo da lareira, agora já
se apagando, lançava um fraco brilho alaranjado sobre a mobília. E enormes
janelas entalhadas criavam faixas consecutivas de luz e escuridão, a partir da
claridade das luminárias da rua. Quando eu a ouvi proferir qualquer ameaça
lá embaixo, fiz o possível para acalmar meu coração, que pulsava tão forte e
tão alto, que cheguei a acreditar que Dorota poderia escutá-lo.
Eu
não fazia a menor ideia de quais eram as minhas opções, além daquela em que eu
seria assassinado por minha própria esposa. Tentei arquitetar algum plano de
fuga, mas agora eu sabia que Dora era perigosa: jamais permitiria que eu saísse
a salvo dessa armadilha tão brilhantemente planejada.
Enquanto
ouvia passos na escada, me movimentei o mais sorrateiramente possível à procura
de algum lugar para me esconder. Por mais que tentasse, Dorota obviamente não
conseguia ser silenciosa à minha audição tão aguçada pelo medo e pela
adrenalina; ao menos, não tanto ela quanto desejava. Com uma agilidade que não
me era comum, ocultei-me atrás de uma armadura medieval, que era mais um membro
pouco discreto da decoração exagerada da mansão. Por lá fiquei, prendendo a
respiração para não chamar a atenção.
Ela
chegou.
Observei-a
pela pequena fresta entre o braço e o tronco da armadura de metal, enquanto ela
esquadrinhava o ambiente aparentemente deserto. Enquanto procurava, andando
devagar e checando cada possível esconderijo, disse-me:
– Acha mesmo que adiar sua morte é uma opção sensata, meu marido? – a voz era
calma e letal, quase maníaca – Não é prudente irritar-me! Assim você acabará
por me obrigar a lhe presentear com uma morte lenta, querido, mas não quero
fazer meu marido sofrer. Ao menos, não muito.
– Não
seja tola, Dora querida! – ela rapidamente voltou-se para a direção de onde
vinha o som de minha voz, tentando encontrar-me – Antes que me mate, eu a terei
imobilizado e pego de volta minha arma.
Aproximou-se
devagar, ao mesmo tempo em que corri, evitando passar pela luz para não ser localizado, para detrás da
poltrona em frente à lareira. Ela atirou às cegas, pois apenas era possível
ouvir-me correr, sem poder ver de onde saí ou para onde fui.
– Sabe, Dora – falei, imprudentemente, procurando uma maneira de distraí-la e
irritá-la. Eu agora tinha um plano: faria com que Dorota gastasse toda a
munição, para que pudesse me livrar da morte – Quero contar
que eu a traí – senti como se o ar tivesse ficando mais pesado; de alguma
maneira, eu sabia que atingira o ego de minha esposa vaidosa – Muito bela, a
moça. Uma francesa. Você não sabe o quanto aquele sotaque me atrai... Aliás,
nem eu mesmo sabia!
Dorota
atirou duas vezes na direção da poltrona, e eu corri para o lado oposto da
sala. Mas dessa vez, as coisas não saíram como o planejado. Na pressa, esqueci
de me esquivar da luz. Dorota atirou mais duas ou três vezes e um dos tiros
passou de raspão na minha perna. Desabei sob meu próprio peso, bem diante da
claridade que vinha do enorme vitral
decorado. Gritei. Sem saber ao certo se o fizera pela agonia, pela dor ou pela
derrota. Dorota riu uma risada demente, encontrou o interruptor e reacendeu
todas as luzes. Tentei me levantar, mas já era tarde demais. Ela caminhou em
minha direção, adiando cada passo para dar os devidos dramas aos meus últimos
momentos de vida.
– Você é repugnante, Vicent – disse-me, parando à minha frente.
– E você é demente! – disparei, arquejando, sabendo que já não tinha mais nada a
perder.
– Você deveria apresentar um pouco mais de respeito diante de uma mulher traída
empunhando uma arma.
– Você deveria parar de falar como se fosse uma mulher digna de algum respeito.
– Tem algumas últimas palavras a dizer? – disse ela, levantando uma das
sobrancelhas e tremendo o lábio, seu tique nervoso de quando estava realmente
furiosa.
– Tenho – eu disse a frase seguinte bem devagar, pontuando cada palavra – Você é
demente.
O
tiro. O grito. E a queda.
O
corpo de Dorota caiu imóvel bem ao meu lado, ainda com os olhos abertos e os
cabelos loiros formando um véu fino sobre o rosto. Logo atrás dela, a pouco mais de dois metros de distância, um menino segurando uma arma. Ele tinha a respiração ofegante e os ombros tensos: exatamente a
mesma posição do dia em que o conheci. Christopher.
Ele
soltou a arma no chão, com o olhar assustado e a boca escancarada. Aproximou-se
correndo e abaixou-se ao meu lado. Suas primeiras palavras foram:
– Ela... ela está...?
– Morta – completei, encarando-o com seriedade. Depois acrescentei: – E você
salvou minha vida, garoto.
Ele
se deixou cair, espantado. Apoiei-me no chão e segurei-lhe um ombro.
– Ei – os olhos verdes e marejados de Christopher encontraram os meus – Está tudo
bem. Acabou.
Antes
que eu pudesse esboçar qualquer reação, ele me abraçou com força e chorou
ruidosamente; soluçando e molhando todo o rosto e até parte das minhas costas com seu fluxo interminável de
lágrimas. Sem saber o que fazer, apenas retribuí, repetindo o que já tinha
dito, numa maltrapilha tentativa de acalmá-lo. Poucos instantes depois, o
transe do garoto se desfez, quando o som de sirenes distantes pôde ser ouvido.
Algum vizinho provavelmente chamara a polícia. Ele me encarou, esperando
instruções.
– Vá embora – ordenei.
– Senhor? – perguntou intrigado.
–
Vá, garoto! Eu sei me virar!
– Não, senhor! Não! – ele se pôs a gritar, enquanto enxugava as lágrimas com a
manga da camisa – Eu posso ajudá-lo a caminhar! Vamos embora juntos, não se
preocupe! Eu...
– Não há tempo, Christopher! – interrompi – Não seja tolo! Eu só vou atrasá-lo, e
seremos os dois pegos! Você tem que ir agora...
– Não, Sr. Nicholls, por favor...
– Isso é uma ordem, garoto! – gritei, antes que ele recomeçasse – Veja bem, quero
que faça o seguinte: saia pelos fundos para não ser visto. E volte ao Bela
Vista. Pegue o que for seu e depois vasculhe a minha mala. Vai encontrar algum
dinheiro no fundo falso. Não é muita coisa, mas já é o suficiente. Quero que
saia de Londres e vá tentar a vida noutro lugar. Eu ficarei bem. Não tem que se
preocupar comigo. Nada de mal vai me acontecer... Mas vá depressa! A polícia invadirá
a casa em instantes!
Christopher
pôs-se a chorar outra vez e abraçou-me novamente.
– O s-senhor – gaguejou, levantando-se – O senhor foi o único que já me fez algo
de bom, Sr. Nicholls... Mu-muito obrigado, m-muito mesmo! Um dia, eu sei, nos
encontraremos novamente. Eu juro, Sr. Nicholls! Nós nos encontraremos
novamente!
Ele
virou-se de costas para mim e correu escada abaixo. E eu voltei a me deitar no
chão, ao lado do corpo de Dorota, já sem sentir nenhuma dor na perna.
– Espero que sim, garoto – fiz uma pausa e engoli em seco, pensando no quanto um
estranho, um menino de rua, foi capaz de se tornar importante para mim tão
instantaneamente – Espero que sim, meu
filho.
Talvez
jamais chegássemos a nos encontrar outra vez; mas Christopher seria, para
sempre, o meu garoto.
***
Os
primeiros tímidos raios de sol já iluminavam o céu quando dois policiais saíram
da mansão, cada qual agarrado a um braço de um Sr. Nicholls manco e algemado.
Eram uma ambulância e três viaturas, paradas na rua; uns sete ou oito policiais
e dois enfermeiros. Os corpos do irmão e esposa do Sr. Nicholls estavam cobertos
por lençóis encardidos, sobre duas macas prestes a serem colocadas na
ambulância. Os peritos já tinham ido embora. Também já tinham-se ido meu melhor
amigo, Louis; e a francesa, Srta. Fontaine. Todos o abandonaram. Inclusive eu,
que o deixei sozinho para a polícia. Do galho de uma frondosa árvore na metade
da rua, eu observava aquilo tudo. Escondido.
Eu
não chorava. Cheguei a conclusão – depois de minhas lágrimas terem secado – de
que era inútil chorar. Nada disso livraria o Sr. Nicholls da cadeia. Tive de me
conter para não saltar daquele galho e correr em direção à mansão; para me
entregar no lugar dele quando esse pensamento me ocorreu. Seria inútil, eu
sabia. E, caso servisse para alguma coisa, eles me prenderiam também. E todo o
esforço do Sr. Nicholls para salvar-me teria sido vão. Eu não queria
decepcioná-lo novamente.
Enquanto
eu pensava em tudo isso até minha cabeça doer, colocaram-no dentro da viatura.
Os policiais conversaram por alguns instantes, depois dois deles também
entraram no carro. De cima da árvore, vi-os passarem bem embaixo de mim. De alguma maneira inexplicável, como
se um ímã o tivesse puxado, Sr. Nicholls me olhou. Espantado com a minha
presença, ele demorou alguns instantes para acreditar nos próprios olhos.
Depois sorriu e ergueu as mãos algemadas como quem mostra um troféu. Não parecia
feliz, nem triste. Apenas aliviado. E naquele momento, de alguma forma inexplicável, eu soube. Soube que
tudo estava bem.
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Meus mais sinceros agradecimentos a todos que acompanharam a história, apesar de todos os atrasos e contratempos. A história continuada, intitulada "O Jardineiro", promete muito suspense e logo mais estará disponível. Espero que dediquem a ela o mesmo carinho e atenção que foram dedicados a esta que acaba de terminar. Aguardem mais informações!
(Larissa S.)