sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Aqui jaz um coração


Sob as lágrimas que derramei e as imbecilidades que cometi, está enterrado. Embaixo dos gramados ressequidos desse cemitério de lembranças que jamais passaram de fantasias que criei.
O grito se calou. O pranto secou. O momento se acabou.
O anjo, que sobre a lápide habita, foi testemunha do apodrecer dos sentimentos daquele pobre coração recusado. Que morreu, depois foi enterrado para ser esquecido. E por ter sido esse o único modo de exílio da dor, não recorreu de sua sentença. Aceitou-a de bom grado, com a verdadeira serenidade de um inocente: pagando por um delito que nunca chegou a cometer.
Os planos se desfizeram com a velocidade de um vendaval. E o furacão foi embora, depois de ter passado todo esse tempo se fazendo de brisa mansa. Assim sendo, aqui jaz um coração; cansado de ambicionar excêntricas impossibilidades. Fatigado de amar as entrelinhas. E esgotado por ter chorado de uma só vez, todas as lágrimas que guardou para quando fossem indispensáveis.
O epitáfio não traz arrependimentos pela audácia ou pela imprudência, mas se permite sugerir que não existem anestésicos para dores tão intensas. Nem camuflagens para feridas que ainda não se cicatrizaram.
Aqui jaz um coração, que entorpecido se foi, na esperança de encontrar uma terra onde pudesse entregar-se sem ser abandonado.  


quinta-feira, 27 de setembro de 2012



Dias nublados acontecem porque, algumas vezes, até o sol precisa se esconder por detrás de um lençol cinzento; e chorar sua saudade um pouquinho. Depois ele volta sorrindo, fazendo de conta que estava só um tanto cansado de olhar para a Terra assim, de longe.
O sol é um homem sábio. Mas até os sábios viram meninos acanhados quando o assunto é essa incógnita eterna chamada "amor".

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Café da tarde




Um café, ou cafuné;
Ou seja lá o que rimar
Escreverei no rodapé
“Queria mesmo era te amar”.

Um café, ou cafuné;
Ou qualquer coisa que pedir
Tenho força, tenho fé
Não vou nunca desistir.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Dom Quixote



Lutei contra meus sentimentos da mesma maneira que Dom Quixote lutou contra o moinho: em vão. Jamais conseguirei, porém, fazer de conta. Até de conta não consigo parar de sentir a realidade; essa realidade nossa, que devaneio sozinha, sem deixar você saber.
Aguardo com impaciência o dia da sua chegada que nunca chega.
Malditos sejam os acontecimentos que dão-me esse nó no estômago; tão bem apertado; tão bem entrelaçado, tão indigesto e indecente. E, em meio ao desconexo elo que há entre nós, existimos – ao mesmo tempo  unidos e afastados pelas casualidades de nossas indagações.
Encontrei todas as razões, e mais algumas, para dizer com franqueza: quero você bem longe de mim. O mais distante possível. Para que o meu sentimento possa atravessar o mundo e encontrar-te; só pra eu finalmente ter a certeza de que vale a pena tentar.
Não sou tão corajosa a ponto de enfrentar dragões, nem tão ingênua para enxergá-lo num moinho. Mas sei ser realista: e a realidade diz que vale a pena insistir. É o que farei. 

domingo, 23 de setembro de 2012

Mente cansada


Não da rotina, nem do dia
Mas do nada.
O que dizia; o que fazia
Na madrugada?

Era um presságio do que viria no futuro,
O que esperava do outro lado daquele muro
Que se chamava incerteza.
Deixando de lado a realeza
Para virar mero plebeu
E tomar de volta o que sempre foi seu.

Teve coragem pra derrotar os dragões
E se dispôs a enfrentar o inimigo.
Livrou-se das amarras, rompeu os grilhões;
Foi adiante sem temer nenhum perigo.

Viu o dia virar crepúsculo
E a noite virar manhã.
O tempo pareceu minúsculo
Como um fio fino de lã,
Tecido pelas mãos serenas
De uma pobre tecelã.

Mas o que dizer da realidade,
Essa quimera despudorada?
Usando-se de honestidade,
O que diz-se é: nada.


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Das inconveniências que me trazes



Quero a sua indiferença. Quero o seu desmazelo. Quero o seu fingimento. Quero o seu faz-de-conta. Quero a sua mentira. Quero a sua dissimulação.  Quero suas falhas. Quero seus erros. Quero seus medos. Quero suas máscaras. Quero suas camuflagens. Quero sua canalhice. Quero sua insensibilidade. Quero sua negligência. Quero seu mau humor. Quero seus péssimos hábitos. Quero seus defeitos. Quero seus desfeitos. Quero sua aversão. Quero seu desapego. Quero sua má vontade. Quero seus vícios. Quero seu aborrecimento. Quero seu narcisismo. Quero sua irritação. Quero seu palavreado maldoso. Quero sua chatice. Quero sua impaciência. Quero sua fala arrastada. Quero seu sotaque irritante. Quero sua risada debochada. Quero suas manias. Quero suas excentricidades. Quero suas ilusões.
Quero qualquer coisa  mas, por Deus!  que venha de você.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Conclusão


No fim das contas, acabei sentando sozinho e quase imóvel num banco desconfortável. As pessoas passavam, murmurando coisas entre si. Mas eu sabia o que estavam dizendo, aqueles desalmados! Diziam “Coitadinho, ele ainda não entende essas coisas!” ou “Pobre garoto, nem sabe direito o que está acontecendo!”  era isso o que sussurravam, pode ter certeza. O que se passava em suas mentes medíocres? Será que por que eu tenho sete anos, estaria menos triste que os adultos?
A roupa preta em que me puseram quando acordei pela manhã já estava me zangando. E todos aqueles tios barrigudos e tias velhas e solteiras insistiam em dizer que eu tinha crescido muito. E que estava bonito. E que era uma pena o papai não poder ver-me crescer ainda mais. E que ele estaria orgulhoso. E que eu tinha de ser um bom menino para ajudar a mamãe. E, o que era mais irritante, teimavam em apertar minhas bochechas e proclamar em altos tons que eu era a coisa mais fofa do mundo ou algo do tipo. 
Gente que eu nem conhecia vinha me dar os pêsames. Eu nem cheguei a perguntar o que era isso e para quê servia, não fazia a menor diferença. O que importava era que o papai estava dentro daquele caixão lá na sala, cercado por velas e por pessoas: dessas, que lá no fundo  bem no fundo, mesmo  estavam indiferentes à dor da mamãe, que chorava debruçada sobre o corpo inerte do marido.
“Tão jovem”, diziam, “Tinha uma vida inteira pela frente”, suspiravam, “Mas está em um lugar melhor agora.” Até cheguei a acreditar nisso, de tanto que repetiam. Mas então fomos ao cemitério e enterram o papai. Quando começou a chover, todos foram embora: menos ele. Ficou lá, embaixo da terra, sendo molhado pelo enorme aguaceiro que caía do céu. E ninguém se importou. Nem mesmo a mamãe.
Aquilo não era um lugar melhor. E, se foi lá que terminou, então meu pai tinha sido muito mal. E acabou no inferno.


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Auto-retrato


Observando atentamente o meu extremo mau gosto para escolher o que vestir na manhã de hoje, eu me mirava no espelho sem a menor vontade de sair de casa. Mas o dia estava a minha espera. De um jeito que não fazia há tempos.
Todas aquelas coisas que eu adiei soaram estridentemente em meus ouvidos, junto ao despertador. Levantei-me e tentei tomar o indigesto café da manhã; temperado de realidade.
Café com rotina. Pão com tédio.
Naquele instante eu só esperava que dessa vez, minha paciência se esgotasse um pouco mais tarde. E quando o meu ato-retrato ficar demasiadamente obsoleto, eu saberei criar um novo. Mas o espelho, esse não não mente. E depôs contra mim; gritando ao mundo que meu sorriso era de mentira.
Depois do banho gelado para espantar o calor, tudo o que eu tinha a fazer era esconder a frieza que envolvia minha alma.
Tranquei a porta. Saí para a rua.
Mundo, aí vou eu.

sábado, 15 de setembro de 2012


Você vinha caminhando sem pressa pela calçada, sorrindo monalisamente, e eu pensei: “Seu cretino, como podes ser tão odiável?” – sinceramente, eu quis matar você. Quis mesmo, quis te sufocar com as minhas próprias mãos. E quis te dizer todas as coisas que eu penso a seu respeito. E quis te mandar pra bem longe de mim. E quis te jogar na cara o quanto você é desprezível. Ou, ao menos, o quanto eu amo você.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XV



Com a arma na mão, ainda que trêmula, eu finalmente me sentia completo. Era como se aquela pistola fosse parte do meu braço estendido; uma continuação de mim, o complemento que faltava para que eu me tornasse tudo o que busquei durante a vida inteira.
O medo era tão evidente nas feições de Phillip que cheguei a pensar em poupá-lo. Mas quando eu me lembrei de meu pai, percebi que não: ele não merecia qualquer tipo de compaixão. A única coisa que merecia, afinal, era a morte. E esse era exatamente o motivo de eu estar ali.
Aproximei-me sorrindo de uma maneira meio maníaca, sem poder conter a alegria. E ele se encostou na parede, com os olhos arregalados e a boca aberta. Era como se estivesse imerso em um tipo de transe esmagador, vendo seus pesadelos tornarem-se uma realidade que parecia impossível há cinco minutos.
 O que faz aqui?  perguntou depois de quase um minuto; como se seu cérebro tivesse voltado a funcionar com uma faísca qualquer que lampejou dentro dele.
 Seu desgraçado  sibilei entre dentes, sentindo um fervor percorrer-me todo o corpo com a nova descarga de adrenalina que me envolveu  Você o matou!
 Não! Não fui eu!  ele gritava, estendendo as mãos para o alto  Eu juro!
Lágrimas saltaram de seus olhos, percorrendo o rosto até o queixo. Desespero.
Balancei a cabeça negativamente.
 Você sempre foi um mentiroso covarde, Phillip  insultei.
 Por favor, Vicent! Não faça isso!  gaguejava, em meio a soluços exagerados  Somos irmãos! Nós dois crescemos juntos!
Minha fúria aumentou.
– E por que eu teria compaixão? Por toda a vida você me chamou de bastardo. E quando soubemos da verdade  engoli em seco, contendo o ódio  você o matou.
– Vicent, não me mate! Dou-lhe o que quiser! Dou-lhe quanto quiser!
– Acha mesmo que a minha vingança tem um preço, Phillip?  eu puxei a trava da arma, preparando-a para seu dever, e ele soltou uma exclamação de pavor  Não é o seu dinheiro que eu quero. Mas o seu sangue. Para vingar meu pai como ele merece! Eu quero ver a luz deixar os seus olhos, exatamente como você fez com ele! Vamos, conte-me: como você o matou?
 Eu não o matei, eu...
 Mesmo?  interrompi  Então porque teve que se esconder?
 Eu tive medo, Vicent! Tive medo de você!
 E porque teria medo se não fosse culpado?
Phillip se calou de súbito, como se seu maior segredo tivesse sido descoberto. Seu melhor argumento falhara. Ajoelhado no chão, ele juntava as mãos implorando pela própria vida.
Fui acometido por uma imensa onda de nostalgias. Lembranças de nossa infância; quando ele costumava pôr-me a culpa pelas travessuras  como na vez em que fumou um dos charutos importados do nosso pai. E da adolescência, época em que ele costumava a contar às garotas do colégio que eu era um bastardo. Da juventude; quando ele foi para a guerra e voltou com sua pompa exagerada, dizendo a todos que recebeu medalhas por honra e bravura  mas ninguém jamais chegou a vê-las por muito tempo, até que ele cedeu à pressão e mostrou-as para nós: e eu fui o único a perceber que eram mais falsas que suas histórias sobre como as ganhou. E, finalmente, memórias da última vez em que nos encontramos. E a maneira que ele agiu quando soube que eu era tão filho de Marcus Mason quanto ele.
Respirei fundo.
 Quais são as suas últimas palavras, irmão perguntei.
Percebendo que a morte era inevitável, Phillip abraçou-a como um verdadeiro homem de coragem, de uma maneira que nunca fizera antes. Pela primeira vez na vida  e última , Phillip se atreveu a ser ele mesmo. Encarou-me com uma expressão carregada de tanto ódio que quase cheguei a pensar que quem estava prestes a morrer fosse eu.
 Eu espero que você morra também, seu bastardo nojento  ele falava de uma maneira arrastada, como quem lança uma maldição – Mas que tenha uma morte pior que a minha. Você e aquela vadia a quem chama de espo...
Puxei o gatilho.
Os olhos de Phillip ficaram distantes por alguns instantes. As feições mudaram para um vazio estranho; como uma mistura de dor, surpresa e medo. Ele levou a mão direita ao peito, mas não houve tempo para que checasse o grau dos próprios ferimentos. Caiu para um lado ainda com os olhos abertos, mas já sem enxergar.
Meu coração martelava no peito de um jeito que me fazia temer estar tendo um ataque cardíaco. Uma poça de sangue começou a se formar pelo piso branco e extremamente lustroso diante de mim, onde o corpo inerte do meu meio irmão jazia em uma posição bizarra. Larguei a arma no chão, ainda em choque, e aproximei-me de Phillip. Arfando com dificuldade, eu senti o peso de uma morte sobre meus ombros. Ajoelhei-me ao lado dele, com uma estranha sensação de perda no lugar onde deveria estar minha vitória; meu sentimento de triunfo. Era como se minha cede de vingança não tivesse sido saciada.
Quase sendo tocada pelo sangue que cobria boa parte do chão ao redor do corpo, havia uma carta. Agarrei-a rapidamente, antes que fosse manchada de vermelho. Phillip jamais chegou a lê-la, pois ainda estava lacrada. Abri o envelope, ainda com as mãos trêmulas. E então uma pontada dentro do peito me fez cambalear e sentar-me no chão ao lado de Phillip, quando imediatamente reconheci a letra do remetente. Ou, melhor dizendo, da remetente.

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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Carta 2

Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 2012

Querido ex-amor,

             É uma pena. É realmente uma lástima que você não esteja aqui para ver. Sim, eu queria que estivesse. Sei que parece irônico. Só que falo sério. Tenho uma enorme vontade de mostrar o quanto a solidão me fez bem. Pode ser que eu esteja sendo dramática ou exagerada   ou qualquer outro dos defeitos que você gostava tanto de apontar , mas talvez a sua ausência tenha sido uma das melhores coisas que me aconteceu.
Mas deixemos as acusações e passemos às novidades.
Venho contar que pintei aquela parede de azul, como você vivia insistindo pra fazer. À tarde, quando o sol bate, é como estar dentro do céu. Nisso você tinha razão, a sala ficou mais alegre. Eu também fiquei, desde que você foi embora. Como pude acreditar que era sua presença que me fazia feliz? Acho que você me sufocou e eu parei de pensar, só pode ter sido isso. 
Escrevo coisas sobre nós dois. E a cada folha amassada que atiro na lixeira, transformo mais um sonho antigo numa mera lembrança distante.
Joguei fora aqueles filmes que você odiava tanto. Parei de assisti-los porque já os sei de cor. E da tua fala ensaiada também me lembro. Não me saem da cabeça todas as suas críticas infundadas, estragando a genialidade dos meus atores favoritos. Vou mudar de gostos! E, admito, você tinha razão outra vez.
Cansei das músicas também. E dos livros. Joguei fora tudo o que era seu. Em nome da sua ausência, resolvi preencher minha casa comigo mesma. E com as coisas que você não gostava; e com o que discordávamos; e com as minhas preferências. Até mudei a mobília de lugar! Você estava certo, já era hora de repaginar um pouco o lugar.
Parei com o sentimentalismo. Me desfiz de coisas velhas e das opiniões ultrapassadas. Comprei uma planta pra colocar no corredor, naquele cantinho onde você costumava largar os sapatos quando voltava da rua. Lembra? Discutíamos muito por causa disso; às vezes por coisas menores. E cinco minutos depois, mesmo tendo esquecido os motivos da discordância, continuávamos irritados um com o outro. Era quase um ritual. Você sempre acertou quando dizia que eu implicava simplesmente por implicar. De fato, era o único jeito de chamar sua atenção.
Também parei de fumar. E diminuí a cafeína. Comprei um peixe, a quem dei o seu nome. Mas ele só gosta de mim quando ou o alimento. Exatamente como você fazia; amava-me somente quando lhe era conveniente. Por onde andei, que não percebi isso antes? Acho que você me cegou.
Estou me exercitando mais e comendo corretamente. Até criei o hábito de correr na orla da praia, observando o sol se por à distância, no mar. Você sempre disse que eu deveria ser mais saudável. E agradeço-o por isso. Me sinto bem melhor agora. Respiro melhor sem o cigarro; me movimento melhor sem o fast-food; vivo melhor sem você.
Mudei o visual. Fiz um corte de cabelo mais moderno, troquei os óculos por lentes e me presenteei com roupas novas. Lembra quando você dizia que eu deveria cuidar mais de mim? Estou fazendo isso, agora que não preciso mais gastar meu tempo com você. Você tinha razão naquelas raras vezes que se esquecia um pouco do seu narcisismo e se atrevia a observar-me.
Basicamente, gastei todas essas palavras para contar-lhe que você, de fato, tinha mesmo toda a razão. Nunca fomos feitos um para o outro. Acho bem provável que essa tenha sido a coisa mais sensata que você disse. Talvez porque, na verdade, você nunca tenha merecido o amor que eu te dei. 
Com sinceros votos de uma bem vida feliz, bem bonita e bem distante de mim, despeço-me pela última vez. 
Carinhosamente,
Tua ex-apaixonada

Estigma


Sentada à mesa da cozinha, escrevendo.
Meia noite.
Meia luz.
Meias verdades.
Todos os dias fazem anos.
Todos os anos fazem milênios.
Todos os dias faço a mesma coisa.
Coleciono cicatrizes.
Esbarrões.
Acho que vou tentar descobrir-me em mim.
E se eu falhar, minha coleção aumenta.
Marcada.


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XIV


A ideia do Sr. Nicholls era simples: não poderia ser mais fácil de entender. E eu iria fazer exatamente o que ele me ordenara.
Saí correndo do restaurante, sem me importar com os olhares que arranquei das pessoas que ali se reuniam. O vento gelado da noite açoitava o meu rosto como uma centena de facas afiadas. Tropecei algumas vezes pela calçada e inclusive sujei a roupa nova. Mas não parei de correr. Nem mesmo quando esbarrei em um homem que derrubou um livro no chão e lançou-me uma ameaça qualquer, que não tive tempo de ouvir. Parei ofegante na esquina da Theodor Millor com a Principal. Entrei no casarão aos tropeços, sem perceber que tinha rasgado parte da manga do terno.
 Louis? – gritei  Louis, cadê você?  corri escada acima e tornei a gritar  Louis!
Nenhuma resposta.
Voltei à sala de estar, onde três garotos estavam sentados no sofá. Encaravam-me com olhos curiosos, depois cochicharam entre si. Então um deles se levantou de súbito dizendo:
 Sim, é ele  gritou, apontando-me  É só o Craig! Porque está vestido assim, Craig? Quase nos enganou!
Era um meninozinho com cerca de nove anos. O rosto estava sujo e as roupas rasgadas. O cabelo escuro crescia-lhe até os ombros, semi-escondidos por uma boina xadrez. Eu não me lembrava seu nome, mas sabia de sua fama: era trapaceiro e gostava de tirar vantagens das pessoas.
 Onde está Louis Collins? Você por acaso o viu?  perguntei-lhe.
Ele sorriu seu sorriso amarelado, vendo uma oportunidade.
 Talvez  deu de ombros  Depende do que eu ganho em troca.
 Ora, vamos lá! É importante!
 Importante?  os olhos brilhavam  Isso torna o serviço mais caro.
 Você fala como um matador de aluguel, garoto  eu disse com desdém.
 E você continua sendo um menino de rua idiota, ainda que mude de roupa  retrucou.
Fiz que iria acertar-lhe um tapa, levantando uma das mãos com rapidez e parando-a no meio do caminho. Ele arregalou os olhos e recuou de volta a seus companheiros, onde, sentindo-se seguro, voltou a lançar-me insultos.
 O que diabos está acontecendo aqui?
Virei-me para a porta do corredor, de onde vinha a indagação.
 Óh, nunca estive tão feliz por vê-lo  eu disse, encarando meu melhor amigo.
 Aconteceu alguma coisa? Por que está vestido desse jeito? – ele se aproximou devagar, com os braços cruzados e os passos quase ensaiados, analisando-me criteriosamente.
 Preciso se sua ajuda, Louis.
 Isso eu já supunha. A pergunta é: o que quer que eu faça e quando?
As crianças amontoadas no sofá  inclusive o garotinho com quem eu tinha falado  observavam a conversa atentamente, quase dependurando-se umas sobre as outras para poder ouvir melhor. Notei-as com minha visão periférica, ávidas por entender o que estava se passando. Discretamente, fiz sinal para que Collins me acompanhasse até a rua.
 Vejo que esse emprego tem lhe feito bem, Christopher  disse-me, quando deixamos a casa.
 Louis, o Sr. Nicholls tem um plano.
 É claro que tem, seria um tolo se não tivesse!
Fiquei em silêncio por alguns instantes.
 Preciso de sua ajuda para executá-lo.
 E o que espera que eu faça?
Quando contei-lhe o plano, Collins ficou pensativo, mas, é claro, aceitou participar. Na noite seguinte, no horário combinado, estávamos os dois escondidos atrás do tronco de uma grande árvore na esquina da rua enquanto uma mulher muito bela e bem vestida caminhava casualmente pela calçada. Desacompanhada.  
Fiz sinal para Collins e nós dois corremos ao encontro dela. A algazarra foi geral. Louis gritava que era um assalto, a mulher pedia socorro com um sotaque francês muito carregado e eu a ameaçava com uma faca. Não demorou muito para que dois homens uniformizados saíssem de dentro da mansão cor de marfim, correndo para salvar a moça em perigo. Ao avistá-los, Louis e eu voltamos a correr rua acima, parando para descansar somente depois de sair do campo de visão dos seguranças.
Observamos de longe quando eles levaram a pobre coitada  que estava aos prantos  para dentro da casa. Ela era de fato uma atriz incontestavelmente incrível. Cerca de vinte ou trinta minutos depois, ela voltou para a rua. Só que sozinha e muito bem recomposta, sem lágrimas, sem gritos aflitos. Do outro extremo da rua, o Sr. Nicholls veio caminhando apressado e nós corremos para alcançá-lo.
 Tudo certo lá dentro, Caterine?  perguntou ele.
Ela o encarou com uma expressão sedutora  inclusive para mim, que mal passava de um garoto.
 Eu nunca falho, monsieur.
Como o combinado, Louis e eu ficamos de vigia na rua. Sentamo-nos no meio fio enquanto o Sr. Nicholls e a mulher voltaram para dentro da casa. Eu não queria que o plano B precisasse ser executado, porque esse consistia em distair alguma pessoa que pudesse pôr tudo em risco, enquanto Louis entrava na mansão para avisar aos demais da necessidade de fugir pelos fundos. Fechei os olhos e desejei que tudo corresse bem, exatamente como o planejado.
O silêncio inquebrável que pairava sobre os casarões daquela rua parecia um presságio, como que uma preparação para a marcha fúnebre que ocorreria logo depois que encontrassem o corpo. Eu estava tenso, pois não fazia ideia de como agir caso alguém aparecesse. Mas precisava manter o sangue frio, mesmo tendo consciência de que um homicídio estava prestes a acontecer. Um homicídio no qual eu estava envolvido até o último fio de cabelo.
Era por volta de nove e meia da noite. Uma mulher vinha solitária pela rua, carregando uma mala florida. Aquela sim, tinha todos os atributos de uma verdadeira dama em perigo. Louis e eu nos entreolhamos, engolindo em seco. No fundo, esperávamos que a rua permanecesse deserta enquanto estávamos vigiando. Mesmo sendo alguém que aparentemente não oferecia sequer a menor ameaça, nós nos assustamos. Ela se aproximou imponentemente, sem se importar com a possibilidade de que talvez pudéssemos ser perigosos. Olhou-nos de cima embaixo; colocou a mala no chão.
Antes que esboçássemos qualquer reação, ela perguntou:
 Essa é a casa de Phillip Mason?
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Link do Capítulo XV (próximo) - EM BREVE!

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

(in)fundamentos

Viajei;
Para a Terra dos Amantes. Mas não amei ninguém. Estava sem tempo. Acredito que deve existir algo tênue que me complete, mas nada me encorajou a encontrar tal coisa. Confesso que fiquei protelando. E agora caí no maldito círculo vicioso a que todos me alertaram para manter distância.
Incendiando;
Como uma grande fogueira de madeiras apodrecidas, no meio de uma noite gélida de fracassos. Ou numa madrugada de sonhos infundados e confusos. Permiti espaço à tristeza, sem me atrever a barrá-la. Talvez porque fosse bem vinda. Estive procurando desafetos, veja só: encontrei-os.
Pensamentos;
Meus maltrapilhos e desonestos modos de sentir culpa. Meus arrependimentos desnecessários. E todos os sonhos que construí em uma noite; desfiz noutra.
Finais;
O que é bom geralmente tem um fim maldoso ou debochado. E eu cheguei a me esquecer como é o gosto do medo. Mas como eu poderia fazer crítica se nem ao menos tive um começo? Ou um meio? Meu final meramente não existe.



quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Promessas




 Ando deveras preocupando, meu caro   dizia o amigo intelectual, enquanto o garçom não trazia as bebidas.
 Mesmo? E por quê?   quis saber o outro; não tão intelectual, não muito interessado.
Uma pausa dramática antes de responder:
 Quero ver mudanças! Mas essas promessas... Essas promessas nunca vingam!
 Está falando de amor?
 Não. De política.

(Eleições 2012: Acordem, brasileiros!)

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Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho
vira direto vinagre”
                                       (Antônio Carlos de Brito)

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Pierrot



Eu o abracei, me despedi e deixei-o ir embora; eu o abracei, me despedi e deixei-o ir embora. Deve ser porque minha vontade não se transformou em coragem a tempo. O meu olhar não vai encontrá-lo outra vez. Naqueles olhos castanhos nunca terei um lugar.
E ao cair da noite, quando as horas da madrugada se estendem, eu me vejo pensando em minhas próprias epopéias imaginárias. Indaguei-me se quero dias menos amargos ou bebidas mais adoçadas  não por açúcar, mas por lembranças doces. É que não há muito a se fazer quando vejo aquele sorriso ao fechar os olhos.
Até que o mundo gire ao contrário, contarei meu conto fingindo não ser ficção. Porque sobre nós, não há nada a dizer  não existe nós, existo eu. E depois ele. Separados.
O futuro pertence a mim. Eu, que tento traduzir em palavras o que queria estar vivendo.




A palavra que vinha na cabeça quando se lembrava dela era essa: doce. Mas não conseguia entender, porém, os motivos que a levaram a se tornar tão amarga.
O que era doce se acabou. E fim da história.


O cheiro do café



Quando o relógio digital marcou quatro da manhã, ele finalmente desistiu de ficar revirando-se sobre os lençóis. Assustou-se com a própria persistência, mas já estava farto de encarar o teto acima da cama. Mesmo tendo plena consciência de que poucas horas de sono lhe restavam, respirou fundo e levantou-se.
O chão estava gelado quando ele caminhou descalço até a cozinha. E   sabendo que não teria mais muito tempo para aproveitar boa parte das coisas que lhe eram preciosas  , concluiu que uma xícara de café no meio da madrugada não faria mal nenhum.
O café era doce, mas o coração estava amargurado.
E a bebida favorita chegou a perder o gosto por quase um segundo, quando ele não foi capaz de conter mais uma onda de pensamentos. Eram os sonhos tornando-se possíveis. E os pesadelos também. Mas não queria, porém, pensar neles. Nem nos sonhos; nem nos pesadelos. Mas nas realidades.
Uma fumaça tímida se desprendeu do líquido escuro na xícara e passeou perto de seu rosto, quase que acariciando-o. Era um incentivo. O sorriso foi inevitável quando ocorreu-lhe a ideia sonhadora de que talvez, se pudesse falar, aquele café diria:
 Vá. E não desista.

(A um novo amigo, que merecia um presente de despedida)

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Estrela Cadente



Fechei os olhos e fiz um pedido. Sabia que era impossível, mas talvez valesse a pena tentar. Pedi com toda a força que encontrei em mim; e cheguei a acreditar que o meu desejo se realizaria. Então me lembrei que não acreditava nessas coisas – e a magia foi embora.
Tenho essa mania de me apaixonar por sorrisos. Mas sorrisos que jamais serão meus, por mais que eu teime em mentir para mim mesma. E, enquanto eu me engano, os sorrisos vão-se embora. Meu sorriso favorito vai se apagar da memória antes que o meu pedido para a estrela o traga para perto. Voltarei a viver sem o brilho que ele me trouxe.
Quando encontrei todas as coisas que procurava, tive-as por poucos instantes e nem pude me despedir. Como a luz passageira que eu vi riscando o céu na noite passada. Mas sou caçadora de quem sou; e vou atrás de minha estrela. Aquela que fugiu de mim.
Depois de algum tempo, descobri que voltei a acreditar nas coisas que cheguei a crer que não existissem mais.

domingo, 2 de setembro de 2012

Indescritível




Guarda teu amigo sob a chave de tua própria vida.
William Shakespeare

Poucas vezes na vida nos deparamos com uma alma semelhante à nossa. Cheguei um dia a pensar que fosse impossível. Cada um tem dentro de si as próprias histórias; as próprias conclusões; as próprias nobrezas. Enquanto eu me distraia com essa ideia, veio o destino – com sua estranha mania de surpreender-me  e soprou bons ventos a meu favor. Então ele apareceu em meio ao vendaval: ousando ser meu amigo quando eu ainda estava invisível aos demais olhos.
Antes de descobrir seu nome, descobri que aquele jeito de titânio era uma máscara. Acho que eu usaria a palavra “gentileza” para começar a defini-lo. E uma das primeiras coisas que aprendi a respeito dele foi que seus sonhos eram maiores que a cidade onde nasceu. Como se há muito tempo já tivesse decidido romper quaisquer barreiras que se erguessem pelo caminho. Mas não é fácil deixar tanta coisa para trás em busca de um objetivo.  Por isso, aqui uso a palavra “determinação”.
E quando eu precisei de socorro, ele me estendeu a mão  não por esperar algo em troca, mas por sincera e pura amizade. A palavra é “companheirismo”. Me pego a sorrir pensando nas risadas sem motivo que já dividimos, com um acesso de nostalgia de momentos que estão só começando. E eu digo: “obrigada”!
Aprendi que o tempo é o que menos importa. Amizade acontece em segundos; no momento em que duas almas sorriem uma para a outra.

(Feliz aniversário, Lipe!)