sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XIII


Era início de noite. Mais uma sexta-feira igual a todas as outras na grande cidade de Londres: ruas vazias e bares abarrotados, explodindo de gente. Em outros tempos, eu seria o centro das atenções em um desses aglomerados de pessoas. Convidariam-me a sentar em mesas importantes; eu beberia por conta da casa; depois contaria mais uma de minhas histórias inventadas sobre a Guerra, de modo que todas as mulheres se sentiriam seduzidas por minha bravura. Cheguei até a pensar que se as falsas aventuras que criei já não estivessem tão batidas, talvez eu me atrevesse a escrever um livro sobre elas.
Mas essa noite era diferente dessa magia. Não passava do reflexo espelhado das noites que outrora eu tivera. Como uma imagem pelo avesso. Eu não sentia a menor vontade de me levantar da poltrona confortável diante da lareira. Faziam horas que eu estava quase imóvel, parado na sala de estar do segundo andar da minha mansão, observando o fogo consumir a lenha. A taça de vinho numa mão, o charuto importado na outra. Nada me trazia inspiração.
– Senhor Mason? – chamou a voz conhecida de Alexander, meu mordomo.
– O que é? – respondi secamente, sem encará-lo.
– Chegou uma carta para o senhor.
– Deixe na mesa, ao lado da garrafa de vinho – ordenei, sem fazer questão.
– Sim, senhor – ele obedeceu, depois tornou a dizer: – Senhor?
– Ora, essa! Fale logo de uma vez, Alexander! – bradei, sem tirar os olhos das chamas que crepitavam na lareira.
– Perdoe minha insolência, senhor – eu não podia vê-lo, mas tinha certeza de que ele fizera uma reverência ao dizer isso – Gostaria de dizer que, caso o senhor não precise mais de meus serviços por hoje, estou de saída.
– Vá depressa e não volte a me importunar – eu traguei o meu charuto e lancei a fumaça para cima – E apague as luzes antes de ir.
– Sim, senhor.
Ouvi quando ele se foi, conversando em voz baixa com a empregada e a cozinheira. A sala de estar era o único ambiente iluminado da mansão. E eu me vi sozinho dentro de uma casa que tinha espaço para abrigar centenas de pessoas. É claro que eu não tinha a menor vontade de dividir minha fortuna com os menos favorecidos ou qualquer coisa nesse estilo bom samaritano. Mas eu me sentia solitário; e a procura por alguém que suprisse esse vazio já tinha esgotado toda a minha paciência.
Devaneando enquanto bebia e fumava, voltei a pensar nela. A única mulher que realmente amei na vida. E em como o bastardo filho de meu pai arrancou-a de mim, sem que eu pudesse tê-la. Há alguns meses cheguei a escrever para minha amada Dorota, mas nunca obtive qualquer resposta. Apesar de ter demonstrado grande afeto por mim, tenho certeza de que ela jamais seria capaz de trair o marido.
Todas aquelas damas com quem eu me ocupava já não me eram mais suficientes – sempre iguais, sempre apaixonadas pelos meus feitos heróicos, sempre meramente substituíveis. Eu tinha tudo. E a única coisa que não tinha era Dorota. Por isso eu a desejava tanto.
Deixei o charuto no cinzeiro e tomei coragem para me levantar. Estava decidido a ir dormir cedo, já que não havia nada interessante para fazer naquela noite. Ao colocar a taça de vinho vazia sobre a mesa pequena ao lado da poltrona, vi o envelope que Alexander tinha deixado ali em cima. Estendi a mão para pegá-lo, mas no mesmo instante, ouvi um barulho estranho vindo do andar de baixo. Fiquei em estado de alerta imediatamente.
– Quem está aí? – perguntei.
Nenhuma resposta, o que só fez aumentar a minha desconfiança. Com o envelope nas mão, caminhei pelo corredor e parei no topo da escada, esquadrinhando minuciosamente o ambiente lá embaixo. Tentei encontrar qualquer alteração no que via através da penumbra causada pela claridade que vinha da sala de estar, mas nada parecia fora do lugar. Lá embaixo, a escuridão era abrangente. Eu sabia que não seria seguro descer, mas era como se algo me empurrasse pelos degraus. Quase grudado no corrimão, eu tirei os sapatos para não fazer barulho e andei devagar. Ao chegar na metade da escadaria, eu me vi num negrume assustador. Tentei refrear a mim mesmo, mas estava curioso. Senti as pernas começarem a tremer, mas ainda assim continuei a caminhada, estranhando a mim mesmo pela bravura incomum.
– Quem está aí? – tornei a perguntar.
Nenhuma resposta.
Parado bem em frente à janela alta que dava para a rua, eu ficava iluminado pela luz que vinha dos postes na calçada. Isso fazia-me sentir estranhamente vulnerável, à mercê das vontades de quem quer que estivesse ali. Todas as dúvidas tinham ido embora: eu tinha certeza de que não estava sozinho. Isso fazia um tremor percorrer-me o corpo. Rapidamente, esquivei-me da claridade dos vitrais da janela e tentei acostumar minha visão à falta de luz.
Com certa dificuldade, pude distinguir os contornos da mobília. Uma estranha sensação de estar sendo observado causava certo formigamento em minha nuca. Caminhei o mais silenciosamente possível até o extremo oposto do cômodo e tateei na parede à procura do interruptor. Por um instante, meus olhos arderam quando todo o ambiente foi inundado pelas lâmpadas dos lustres que pendiam do teto. Pisquei com força algumas vezes, levantando a mão para tapar o rosto. Alguns segundos depois, quando voltei a encarar o ambiente, uma figura estava parada a poucos metros de mim. Um homem, com o braço estendido, apontando uma arma diretamente para o meu peito. O sangue parou de correr por minhas veias quando eu o reconheci. Ele sorriu de contentamento e depois disse:
– Olá, Phill. Presumo que tenha sentido minha falta.

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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XII



Já era noite quando Vicent voltou para o hotel. Sozinho.
Ele veio apressado pela rua enquanto eu o observava da sacada. Abriu o portão baixo e entrou sem notar minha presença. Trazia uma garrafa de whisky e a costumeira expressão carrancuda; mas sem sinal do garoto. Saí para o corredor e parei diante da porta do quarto ao lado do meu, ouvindo Vicent pedir alguma coisa ao recepcionista; e depois o barulho de seus passos se aproximando pela escada. Mal pude vê-lo, devido àquela escuridão quase completa – provavelmente as luzes não funcionavam porque os ratos tinham roído os fios.
Um vulto no escuro disse-me em tom de ordem:
– Vou precisar da sua ajuda.
– Onde está o garoto? – perguntei.
Ele abriu a porta e a claridade da rua que entrava pelas vidraças da sacada fez uma sombra estranha lhe percorrer o rosto.
– Entre – falou, acendendo as luzes do quarto.
Sentei-me na cama, por falta de lugar melhor. E Vicent me olhou daquele jeito acanhado, evitando o contato visual. Era como se sentisse vergonha pelo que aconteceu na noite anterior. Eu sabia que ele não se lembrava de praticamente nada, mas – ao mesmo tempo – tinha certeza de que se lembrava o suficiente. Meio atrapalhado, depois de alguns segundos encarando-me, Vicent pareceu se lembrar que tinha uma garrafa de whisky e dois copos nas mãos. Serviu-nos e depois se sentou na cama à minha frente. Tomei o cuidado de esperar que ele bebesse um gole, para não correr o risco de cair em meu próprio golpe.
– Vou precisar de sua ajuda para chegar a Phillip.                            
– E o que quer que eu faça?
Ele virou o restante do conteúdo do copo de uma só vez, depois sacudiu a cabeça com força.
– Antes de qualquer outra coisa, quero que compre uma arma.
– Você já tem uma arma. Eu o segui e vi quando a comprou, caso sua memória esteja falhando outra vez. E, além do mais, não vejo motivos que me levariam a precisar de uma... – eu me interrompi quando uma ideia ocorreu-me como um estalo, então acrescentei rapidamente: – Ei, espere! Você não está pensando que eu vou matá-lo em seu lugar, está?
– Não seja tola! – disparou, reabastecendo o copo de whisky – Você não está entendendo.
– Então explique.
– Nós vamos à casa de Phillip amanhã à noite.
– Nós? – perguntei com um tom irônico, levantando as sobrancelhas – O que quer dizer com isso? Não estou inclusa nesse termo, estou?
– Tem tanto interesse nisso quanto eu, Srta. Fontaine. Por que seria poupada?
– Em primeiro lugar – falei, levantando-me – me chame de Caterine. E, em segundo lugar, o fato de eu ser uma dama não significa nada para você?
Ele gargalhou debochadamente e também ficou de pé.
– Você? – ele me apontou com o indicador da mesma mão que segurava o copo – Uma dama? Poupe-me de seus argumentos infundados.
– Contenha-se, Vicent! E veja como fala comigo! Pour l'amour de Dieu, você está bêbado novamente?
Ele ignorou meu insulto e voltou a se sentar.
– Escute bem, porque vou explicar uma única vez.
– Eu não pediria mais que isso, chéri – eu disse em um tom falsamente gentil.
– Christopher, o garoto que você conheceu mais cedo, ficou de vigia na casa de Phillip o dia e a noite toda. E descobriu que durante a noite, os funcionários vão embora.
– Todos eles? – interrompi, tentando entender onde Vicent queria chegar.
– Exceto os dois seguranças.
– E como você pretende passar por eles?
Vicent sorriu um meio sorriso.
– É aí que você entra – ele fez uma pausa para mais um gole.
Duas batidas na porta interromperam nossa conversa. Vicent fez sinal pra que eu ficasse em silêncio, colocou o copo sobre a mesa de cabeceira e perguntou:
– Quem é?
– Recepcionista – disse uma voz rouca, vinda do outro lado da porta – Tenho uma carta para o Sr. Vicent Nicholls.
Quando a porta foi aberta, o velho esquisito que era o faz-tudo do hotel estava parado no corredor. Segurava um castiçal em uma das mãos e um envelope na outra. Não pôde conter a expressão de surpresa quando me viu sentada na cama. Lançou um olhar de inveja e repugnância a Vicent, fez uma reverência forçada e se retirou murmurando alguma coisa ininteligível.
– De quem é a carta? – perguntei, interrompendo os devaneios de Vicent, que de repente pareceu se transportar para outro mundo.
Ele guardou o envelope com muito cuidado no bolso interno do paletó e reassumiu a clássica expressão inflexível.
– Ninguém – respondeu secamente, depois voltou ao assunto que fora interrompido – Quero que você distraia os seguranças da mansão.
– E como pretende que eu faça isso? Tem algo em mente?
– Amanhã à noite você ficará a par de todos os meus planos. Até lá, faça o que eu digo: compre uma arma.
– Você ainda não me respondeu: porque eu precisaria de uma arma se você já tem a sua? – repliquei.
– Para o caso de algo correr errado – disse com simplicidade, dando de ombros – Pode ser que sejamos obrigados a recorrer ao plano B.
– E qual é o plano B?
– Você mata os seguranças.
– O quê? – eu voltei a me levantar, estarrecida – Você perdeu o juízo de vez, Vicent?
– Escute aqui, Caterine – ele me segurou com força pelo braço e aproximou-me de seu rosto. Quando voltou a falar, pude sentir seu cheiro de álcool – Eu não confio em você. Mas, se você quer mesmo tirar alguma vantagem dessa situação, preciso saber se posso contar com a sua ajuda. Porque se não puder, o plano todo vai estar perdido. E você fica sem o seu precioso dinheiro, sendo obrigada a voltar para seja lá de onde veio sem um tostão no bolso!
Forcei-o a soltar-me. Depois ameacei:
– Encoste-me novamente, e eu o mato.
– Traia-me, e eu o farei – disse ele com firmeza.
Abri a porta e saí do quarto sem dizer mais nada. Vicent tinha um plano. Ótimo.
Mas eu tinha outro. 

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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Aparição


Acho que aparecestes como um fantasma que somente eu pude ver. Exerceu algum poder hipnótico sobre mim e depois se foi, deixando teu encantamento para trás. Apenas isso; nada além de tua magia. Permaneço sem teu nome, sem teu toque e sem ti. Tua alma que se foi, e a minha esvaindo-se: presas num lugar povoado por lembranças do que nunca aconteceu. Óh, fantasma meu, jamais estaremos juntos!
Sempre me pego imersa em platonismos infundados e amores instantâneos, não é a primeira vez. Mas me vi pensando em ti com uma frequência incomum, mesmo tendo a quase certeza de que não nos encontraremos novamente. Talvez porque nunca tenhamos nos encontrado: quem sabe não sejas mesmo um fantasma que decidiu habitar minha mente por uma só noite? Quem sabe não sejas um anjo de beleza incomparável que me veio desaquietar o coração? Quem sabe eu apenas o imaginei, sorrindo à distância daquela maneira resplandecente?
A verdade é que os traços de teu rosto sereno estão se tornando confusos com o passar dos dias. E logo serás esquecido: a imagem tua transformando-se num espectro. Óh, querido fantasma, saibas que ironia é sinônimo de vida real!
O que tenho a fazer é me conformar com a ideia de que tu não serás nada além de mais um membro da minha coleção de amores platônicos. Adeus, fantasma meu, adeus! Se me encontrares algum dia, saiba presentear-me com aquele sorriso  apenas uma vez mais, para eu poder me despedir.

Song and vídeo from "The Phantom of the Opera" (2004 film)

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XI


 Onde? Onde está aquele cretino?  gritou o Sr. Nicholls, enquanto me sacudia.
 Aca... Acalme-se, senhor  eu tentava dizer.
Mas ele parecia não me ouvir. Empurrou-me com força e obrigou-me a sentar na cama. Foi quando eu notei uma terceira pessoa no quarto: uma mulher. Era linda e delicada, apesar de vestir-se apenas com um roupão. Eu a encarei boquiaberto, depois olhei assustado para o Sr. Nicholls, que de repente também pareceu se lembrar de que não estávamos sozinhos.
Ele virou-se para a mulher e sibilou entre dentes:
 Saia.
 Vicent, eu tenho tanto interesse no que ele tem a dizer quanto vo...
 Saia do meu quarto agora, sua vagabunda!  gritou, apontando para a porta.
Ele tinha uma expressão de fúria intensa; o canto da boca levantado de um jeito que dava um ar hostil às suas feições, como se fosse começar a rosnar a qualquer momento. Os olhos estreitados em uma linha fina, e a testa enrugada em uma carranca ameaçadora. A mulher se encolheu com o grito, e arregalou os olhos de pavor. Ficou alguns segundos estática, paralisada de medo. Depois obedeceu a ordem que recebera, correndo para o corredor.
O Sr. Nicholls trancou a porta quando ela saiu, depois se pôs a caminhar de um lado para o outro do quarto. Eu já tinha parado de ofegar quando ele parou diretamente à minha frente, olhando-me de cima. 
 Agora me diga o que sabe – a voz era estranhamente calma  E não esconda nenhum detalhe.
 Sim, senhor.
Contei exatamente tudo o que vi. Falei de Louis, dos meninos que me forneceram informações e da velha mendiga que disse “saber o que eu fora fazer naquela rua”, depois me acusou de espioná-la  oh, céus, como foi difícil me livrar daquela louca escandalosa! Contei detalhes da casa, dos dois seguranças que revezavam a guarda da propriedade e dos boatos de que o Sr. Mason quase nunca deixava a mansão. Contei que passei a noite na pequena praça diante do casarão, para obter mais informações.  E que descobri que a cozinheira, a empregada e o mordomo iam embora por volta do começo da noite, e só voltavam nas primeiras horas da manhã seguinte. A casa ficava vazia durante esse tempo, exceto pelo patrão e os dois guardas.
Já começava a entardecer quando eu terminei de narrar os acontecimentos. E meu estômago fez um barulho escandaloso quando me lembrei que não comia nada há mais de um dia. Apesar de estar acostumado, eu estava faminto. O Sr. Nicholls também pareceu perceber a mesma coisa. Levantou-se da cama onde estava sentado e revirou a mala, onde pegou um pouco de dinheiro, sem se importar com a minha presença. 
 Venha, garoto  disse-me, colocando o chapéu  Você merece alguma recompensa.
Ele saiu para o corredor e fez sinal para que eu o acompanhasse. Obedeci, ainda que intrigado. Descemos as escadas em silêncio. O recepcionista, que parecia nunca melhorar a cara feia, nos observou por cima de seu jornal amassado quando passamos por ele. O ar parecia mais leve e fácil de respirar quando saímos do hotel. E o entardecer lançava uma luz laranja sobre as ruas, deixando tudo com um aspecto corado e bonito; muito diferente do ambiente lúgubre que era o Bela Vista.
Algumas crianças passeavam pelas calçadas, voltando da escola depois de mais um dia de aula. E carros transitavam pelo calçamento de pedra, dirigidos por homens que seguiam para casa após o fim de seus expedientes de trabalho.
 Sabe me dizer se há algum alfaiate aqui por perto, Christopher?
 Sim, senhor. Fica na Rua do Viajante.
 Leve-me até lá.
Quando chegamos, já se aproximava a hora dos estabelecimentos fecharem. Mas o Sr. Nicholls portava-se de maneira decidida quando entrou na loja, chamada “Alfaiataria dos Irmãos Mitchell”. Fiz o possível para que ele me deixasse de fora, mas não era fácil convencer um homem muito maior e mais forte que eu: arrastou-me porta adentro pelo braço.
Um velho magro e barbudo, que usava um monóculo com uma corrente de ouro veio correndo até nós. Vestido impecavelmente em um terno azul escuro  que, de alguma forma, parecia fazer seus cabelos abundantes parecerem ainda mais brancos , tinha olhos muito claros e falsamente gentis, ainda que adornados por muitas rugas.
 Seja muito bem vindo, senhor  disse, fazendo uma meia reverência e sorrindo  Em que posso servi-lo?
 Quero comprar roupas novas para o garoto  respondeu o Sr. Nicholls, fazendo um aceno de cabeça indicando-me.
A interrogação do alfaiate foi quase a mesma da minha: “Para mim?”; “Para ele?”  perguntamos ao mesmo tempo. O sorriso do velhote se abalou por um instante quando viu sua loja de prestígio sendo invadida por um menino de rua esfarrapado.
 Sim. Isso é um problema?  provocou o Sr. Nicholls, depois acrescentou:  Eu vou pagar.
Era só o que o senhor precisava ouvir. Quase imediatamente, começou a procurar roupas que poderiam me servir, e depois me empurrou para dentro do provador. Eu não fazia ideia do quanto fora gasto naquela loja, mas quando a deixei, estava praticamente irreconhecível.
A noite já era adiantada quando saímos de lá. Os postes de iluminação das ruas estavam acesos e o movimento de carros tinha diminuído.  O Sr. Nicholls me levou para um restaurante e permitiu, inclusive, que eu escolhesse o que comer. Com certa dificuldade, li as opções do cardápio e pedi um prato de frango grelhado, acompanhado de algumas outras coisas. Foi só quando passamos à sobremesa que eu me lembrei de agradecer.
 O senhor é um grande homem  eu disse, com a boca cheia de sorvete de baunilha  Obrigado por tudo o que tem feito por mim.
O Sr. Nicholls encarou-me com seriedade.
 É apenas o meu pagamento pelo seu bom trabalho, garoto.
 Talvez eu nem mereça tudo isso, senhor  respondi com humildade.
 Mas merecerá em breve  ele fez uma grande pausa, olhando-me fixamente  Christopher... eu preciso que você faça uma coisa para mim.

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Link do Capítulo X (anterior)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo X


Colchester, 24 de Março de 1950.


Querido Phillip,                                                                                 


                               Escrevo na esperança de que estas palavras lhe cheguem às mãos em breve e levem algum alento ao teu coração ferido. Só eu sei o quanto a tua companhia agradável me faz falta. Eu estou bem, cuidando sozinha de mim mesma, como é a minha sina. Às vezes me pego pensando que talvez tenha me casado com o homem errado. Depois de tudo o que passei, descobri quem eu realmente amo.
É com muito pesar que informo que Vicent me proibiu de manter contatos com você. Mesmo assim, estou escrevendo (enquanto estou sozinha em casa), pois lhe tenho em grande estima. Que Vicent não fique sabendo – Deus nos livre! –, ele tem se tornado muito violento nos últimos tempos. Já chegou, inclusive, a levantar a mão contra mim. E também me proibiu de sair de casa. Acho que ele já não está em seu juízo perfeito.
Quanto a você, querido Phill, torno a dizer que sinto saudades. Encontro-te em meus sonhos e em minhas lembranças, apenas. Mas não é suficiente: estou indo para Londres. Peço perdão por todos os sofrimentos passados que lhe causei. E espero que me receba com o mesmo amor que me dedicavas antes, pois já não posso mais viver sob o mesmo teto que um homem que odeia a si mesmo e a mim. Eu não amo Vicent. Amo você.
Nos veremos em breve, meu verdadeiro amado. Estou indo ao teu encontro.
Sinceramente,
Dorota

Quando Phillip se mudou do antigo casarão dos Mason, escreveu-me contando o novo endereço. É claro que eu jamais contei para meu marido, por não querer alimentar desconfianças a meu respeito. E também nunca respondi as suas tentativas de me seduzir, pois esperava o momento certo. E esse momento tinha chegado. Eu precisava garantir o meu futuro: de uma maneira, ou de outra.
Saí pelas ruas da vizinhança sombria, carregando duas mentiras dentro de dois envelopes. Era melhor que eu levasse as cartas  uma para Vicent e outra para Phillip  diretamente à Central dos Correios, o que garantiria que ambas chegariam a tempo. O carteiro só passava pela Rua Paraíso uma única vez por semana, levando e trazendo todas as correspondências, porque ninguém se atrevia a andar por aquelas vielas e becos escuros quando era possível evitar.
 Quando as cartas chegam a Londres, senhor?  perguntei ao velhinho simpático da Central dos Correios de Colchester, depois de tê-las despachado.
 Com um pouco de sorte  respondeu-me sorrindo , hoje pela tarde, senhora.
 Obrigada, senhor.
Saí de volta para as ruas do centro da cidade, que estava abarrotado de pessoas. Era dia de feira livre e a manhã estava bonita. Os homens ajuntavam-se em grupos para falar de política ou esportes enquanto fumavam seus cigarros. As mulheres da alta sociedade desfilavam seus vestidos de luxo e chapéus bonitos, escondendo-se do sol embaixo de suas sombrinhas adornadas de renda fina.
Sentei-me num banco qualquer da praça, e me imaginei no lugar delas, gastando dinheiro com viagens, jóias e salões de beleza. Poderia me acostumar com esse tipo de vida facilmente. E, se tudo corresse como o esperado, eu seria uma dama de verdade em muito breve.
Voltei para casa com a certeza de que nada poderia dar errado. E, no dia seguinte, às seis da tarde, eu estava embarcando sozinha num trem para Londres. Eu iria ao encontro de um homem que me faria rica; e cabia somente ao destino escolher quem seria esse homem.

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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo IX


Acordei com a pior dor de cabeça que alguém pode ter na vida. Era ressaca misturada com qualquer outra coisa que eu não conseguia dizer o quê. A luz que entrava pelas vidraças encardidas da porta da sacada era veneno para os meus olhos. E até o barulho dos ratos que corriam acima do forro do quarto parecia infinitamente maior. Irritavam-me, todas essas coisas. Latejavam e ecoavam dentro do meu cérebro, como se o que antes ficava fora, pudesse estar passeando dentro dos meus miolos: os ratos, a luz e qualquer outro incômodo. 
A noite passada era uma lembrança distante em minha mente. Um borrão distorcido e confuso, como se eu a enxergasse através de um vidro sujo de poeira. Três coisas eram inteiras em minha memória: uma taça de vinho, uma boca com batom vermelho e uma voz sedutora que fazia perguntas complicadas.
– Bonjour, dorminhoco.
Abri os olhos com dificuldade, tentando esconder a claridade com a mão. Quando consegui focalizar o rosto de quem me falava, percebi que estava diante da Srta. Fontaine. Sentei-me na cama de súbito  arrependendo-me quase instantaneamente, quando o quarto girou em uma vertigem – e encarei-a com dificuldade. Lembranças da noite indo e vindo em ondas de pensamentos.
Tentei falar, mas minha boca estava seca, o que levou a uma crise de tosse. Com algum esforço, sibilei cinco palavras:
 O que você fez comigo?
Ela sorriu daquele jeito indecente. E a resposta foi simples e sincera:
 Eu o dopei.
E então tudo ficou muito nítido, como se uma parte desligada do meu cérebro de repente decidisse voltar a funcionar. Passei as mãos pelos cabelos, sentindo-me nauseado. Flashes de tudo o que aconteceu passaram por minha mente, contando-me a história de uma maneira resumida. Aquela mulher escultural adentrando o meu quarto seminua, a porta do banheiro entreaberta, a mulher, a taça de vinho, novamente a mulher, as perguntas... as respostas.
 Acho que você se lembrou  disse-me, com uma voz risonha.
Cambaleei para o banheiro só de roupa de baixo, tropeçando três vezes no curto percurso até o chuveiro. Tomei um banho para refrescar os pensamentos, sentindo minhas costas arderem, sem poder imaginar o porquê. Depois encarei-me no espelho quebrado diante da pia. Eu parecia mais branco que o normal  talvez pelo susto, talvez pelo vinho. Meus olhos escuros estavam saltados e uma enorme mancha roxa era visível em meu pescoço: quando eu a toquei, me lembrei do motivo dela estar ali. Virei-me de costas para o espelho e encarei-o por cima dos ombros. Finos riscos vermelhos manchavam a pele branca de sangue: arranhões. “Agora está tudo perdido”, pensei. Depois me peguei a devanear sobre centenas de coisas ao mesmo tempo. Três delas, porém, eram as mais frequentes: Dorota, Caterine e a minha traição.
Eu me sentia sujo e culpado. E, por mais que parecesse insanidade, ainda tinha alguma esperança de que nada tivesse acontecido. Então Caterine entrou no banheiro, desfilando seu andar imponente: minhas esperanças ilusórias foram-se embora tão facilmente quanto todos os meus outros pensamentos. Eu precisava saber qual era o tamanho do estrago.
Ela veio em minha direção com aqueles olhos bem delineados que me colocavam na defensiva. Minha cabeça ainda estava dolorida e meus sentidos confusos. Dei três passos para trás, tentando esquivar-me de seu hipnotismo. Não era tão simples assim. Caterine estava tão perto que me vi respirando no mesmo ritmo que ela, sem querer.
Analisou-me com olhos taxativos e depois concluiu:
 Você parece cansado.
Uma ideia me ocorreu.  Precisei do máximo de concentração para não permitir que escapasse por entre meus demais pensamentos confusos pelos efeitos retardatários do álcool. E então eu decidi: se tudo aquilo era um jogo, eu iria vencer. Improvisei minha melhor cara de mau e empurrei Caterine para a parede mais próxima, prendendo-a de um jeito que não poderia se mover. Aproximei a boca de seu ouvido para dizer:
 Eu nunca me canso  ela estremeceu, depois sorriu. Começou a dizer qualquer coisa, mas eu a interrompi:  Quero que me diga o que você sabe.
 E o que eu ganho?  a pergunta era sugestiva. Senti-me tentado a um milhão de respostas, mas forcei-me a dizer aquela que me pareceu mais imparcial.
 E o que você perde?  repliquei.
Ela pensou por um instante, depois sussurrou uma única palavra em meu ouvido. Senti-me agitado  não pela proximidade ou por qualquer coisa do tipo, mas pelo medo.
A palavra foi:
 Tudo.
Eu a soltei. Distanciei-me cambaleante, retomando a expressão assustada. Caterine aproveitou para reassumir o controle da situação, enquanto eu voltava a afundar-me em devaneios. Fui até a mala e vesti qualquer coisa que encontrei. Ela reapareceu, parando na porta do banheiro com seu ar triunfante.
 Eu perguntei  disse-me, com um sorriso torto  e, com os incentivos certos, você respondeu.
 Do que... do que você está falando?  gaguejei enquanto abotoava a camisa.
 Estou falando de Phillip Mason. E do crime que você pretende cometer, Vicent Nicholls  aqui ela me lançou um olhar de falsa compaixão  Não se lembra de nada, querido? A noite passada não foi tão boa para você?
 Você está blefando.
 Sabe que não estou  ela parou diante de mim, com seu rosto a poucos centímetros do meu  E, caso esteja interessado, posso dizer que nós dois podemos nos beneficiar das circunstâncias.
 Não vejo como isso possa ser possível.
Era o que Caterine esperava que eu dissesse. E sua resposta já estava pronta:
 Tenho uma proposta a fazer  disse, e prosseguiu sem que eu mostrasse sinal de interesse  Eu o ajudo. Faço o que for preciso, Vicent. E você me paga como eu mereço.
 Do que está falando, sua desequilibrada?  eu quase gritava.
 Ora, vamos lá, Vicent!  ela falava com impaciência  Acha que eu não sei? Pode parar com o teatrinho! Você só pretende matá-lo porque quer a herança que seu papaizinho deixou para trás... Eu quero a metade do dinheiro!
Levei a mão à boca de espanto.
 Sua desgraçada, o que acha que eu sou?  disparei, contendo minha vontade de esbofeteá-la, para não manchar minha honra batendo em uma mulher  Não é pelo dinheiro! É pelo meu pai! É por minha esposa! É pela minha vingança! Eu farei a justiça que ninguém mais teve coragem de fazer!
Quando percebi já estava gritando, e respirando de um jeito entrecortado. Uma tontura fez o mundo girar mais depressa sob meus pés e eu me sentei de qualquer maneira no chão, antes que caísse. Encostei-me na parede, trêmulo. Caterine não pareceu se abalar. Na verdade, ela quase sorria. Seus olhos brilhavam com a cobiça que lhe transbordava visivelmente. Então eu percebi a idiotice que acabara de fazer.
 Parfait disse, de um jeito meio maníaco  Se esse é o problema, proponho uma mudança de planos: eu te ajudo a matá-lo e fico com todo o dinheiro.
Tentei não gritar ao dizer:
 E se eu disser não?
O sorriso virou uma expressão de fúria.
 Então eu vou à polícia denunciá-lo, Sr. Nicholls. E pior que isso  ela apontou um dedo diretamente para o meu rosto  Antes vou a Phillip Mason.
O sangue gelou em minhas veias. Engoli em seco.
 Você não...
 Seria capaz?  ela completou minha frase  Seria sim  Caterine estendeu-me a mão e eu me vi em um beco sem saída  Temos um trato?
Eu me levante e apertei-lhe a mão estendida, com muito desgosto.
Teatralmente e parecendo ensaiado, Christopher entrou no quarto aos tropeços. Ofegante e suado, com os cabelos ruivos desgrenhados grudados à testa.
 O que houve, garoto?  perguntei, aproximando-me dele e segurando-o pelos ombros.
Chris fez um grande esforço para conseguir falar, em meio a respiração entrecortada:
 Eu... o encontrei... senhor!

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O crime de Vicent Nicholls - Capítulo VIII


 O que faz você pensar, senhorita, que eu compartilharia contigo de minhas pretensões?  respondeu-me secamente.
 Então realmente pretende matar alguém?
Ele fez uma longa pausa e eu quase pude ouvi-lo tentando pensar na resposta adequada.
 Mesmo que pretendesse  ele encarou-me com ar de superioridade, depois acrescentou: , o que não é o caso... No que isso lhe diz respeito, senhorita?
Eu quase sorri. O astuto Sr. Nicholls realmente não fazia ideia de quem eu era. Talvez porque nem sequer me viu quando foi à casa de meu pai para pedir dinheiro emprestado. Era fim de tarde quando ele chegou à fazenda, carregando uma mala. Meu pai ordenou que eu fosse para o meu quarto, pois não era direito que uma moça de família ficasse se exibindo para um homem, mesmo dentro da própria casa. Obedeci. Mas depois que se trancaram dentro do escritório, esgueirei-me silenciosamente pelo corredor e parei atrás da porta para ouvir a conversa.
Ele contou a meu pai uma história qualquer  só um tolo acreditaria, nem dei atenção. Foquei-me em tentar descobrir para onde ele estava indo. Era óbvio para mim que aquele homem planejava algo muito maior. Talvez um golpe ou um sequestro. Mas de uma coisa eu tinha certeza: eu poderia tirar vantagens daquilo.
Depois de meu pai resolver dar minha mão em casamento a um amigo  um velhote baixinho e barrigudo que tinha quase o triplo da minha idade , eu vinha procurando meios para escapar daquela vida miserável que me aguardava. E eu tinha certeza de que encontrara a oportunidade perfeita. Não a perderia dessa vez.
O homem dormiu no quarto de hóspedes naquela noite. E pela manhã, meu pai ordenou que um dos empregados o levasse de carro até a estação para pegar o trem do meio dia. Na madrugada, acordei a criada e pedi que me ajudasse a deixar a fazenda. Tendo sido ela a mulher que me criou, pois minha mãe morreu quando eu era ainda muito jovem, não hesitou em acobertar-me.
Eu sabia para onde ir. E sabia como e onde encontrar o Sr. Nicholls.
 Diga-me, monsieur  fiz cara de intrigada  Costuma ser sempre tão pouco gentil?
Ele passou a mão com força pela fronte, como quem espera espantar uma dor de cabeça.
 O que a senhorita deseja?  perguntou-me de um jeito seco.
 Um cigarro  eu sorri, enquanto percebia o esforço que ele fazia para não olhar o meu decote  Pode ser aquele que me negou na recepção do hotel. 
 Se eu fizer o que deseja, vai me deixar em paz?
 Talvez  dei de ombros.
Ele tirou um maço de cigarros do bolso interno do paletó e ofereceu-me, sem poder enxergar outra alternativa para livrar-se de mim.
 Você tem fogo?  perguntei, encarando-o de um jeito sedutor. Ele não pode conter o sorriso com a minha pergunta de duplo sentido. Tirou um isqueiro do mesmo bolso e ajudou-me a acender o cigarro.
 Merci  agradeci, depois estendi a mão  Sou Caterine Fontaine.
O sobrenome era falso, é claro, para que ele não desconfiasse do meu parentesco com o poderoso senhor que era meu pai  um fazendeiro francês conhecido por seu coração mole e ingenuidade.
 Vicent Nicholls.
 Um homem tão sério costuma beber?
 Não a essa hora da manhã.
 E a que horas ele bebe?  insisti.
 O que quer de mim, Srta. Fontaine?
 Apenas sua companhia.
Ele respirou fundo e começou a caminhar. Acompanhei-o, mesmo sem ter sido convidada. Enquanto eu o distraía com conversas triviais, pensava em alguma maneira de dopá-lo para que me contasse toda a verdade. Quando chegamos ao hotel, o recepcionista encarou-me daquele jeito esquisito. Eu sabia exatamente o que deveria estar se passando na cabeça dele, mas não o desencorajei  até porque talvez precisasse de sua ajuda futuramente.
No corredor dos aposentos, Vicent Nicholls continuava calado. Respondia as minhas tagarelices com pouco interesse. Então ele entrou em seu quarto e fechou a porta sem me convidar, sem se despedir e sem esforços para parecer gentil. Fui para o meu próprio dormitório pisando fundo. Liguei para o recepcionista e pedi que me trouxesse uma garrafa de vinho. Ele obedeceu com uma eficiência apropriada, fazendo reverências exageradas e pedindo licença quando eu permiti que entrasse em meu quarto.
Passei o restante do dia pensando em como conquistar a confiança do Sr. Nicholls. Ele não era tão corruptível quanto imaginei a princípio. Por volta das sete da noite, despi-me e entrei no banheiro para um banho quente, numa tentativa desesperada de pensar em qualquer coisa que me ajudasse a entrar no quarto ao lado. Nenhuma ideia o dia todo. Eu já começava a perder as esperanças.
Liguei o chuveiro: a água estava gelada. Tive que me conter para evitar um ataque de fúria ali mesmo. Foi necessário muito esforço para que eu não saísse de roupão até a recepção daquele hotel asqueroso num acesso de raiva, para gritar a plenos pulmões com o idiota que me fazia de babador. E, imaginando tal cena, uma ideia brilhante me ocorreu. Eu sorri, encarando a mim mesma no espelho.
 Você é genial, Caterine  falei para mim mesma.
Retoquei o batom e peguei a garrafa de vinho que jazia pela metade sobre a mesa ao lado da minha cama. Tirei o frasco de alucinógeno de dentro da bolsa e esvaziei o conteúdo dentro da garrafa, apanhei a taça e saí para o corredor descalça, vestindo apena o roupão.
Bati na porta.
 Quem é?  a pergunta ecoou lá de dentro.
Não respondi. Vicent tornou a perguntar, com um tom um pouco mais irritado. Continuei calada. Ouvi quando ele caminhou pelo assoalho barulhento do quarto, praguejando em voz alta e lançando ameaças a alguém chamado Christopher.
Ao abrir a porta, sua expressão foi de surpresa. Antes que ele me expulsasse, ensaiei minha melhor cara de inocente e apressei-me em dizer:
 Pardon, Sr. Nicholls! O chuveiro não funciona no meu quarto  entreguei-lhe a garrafa e a taça  Trouxe vinho para recompensá-lo. Preciso tomar um banho! Beba enquanto eu ocupo o seu banheiro...
Entrei no quarto sem ser convidada. Um vento gelado soprava da sacada, mas eu estava com tanta adrenalina correndo por minhas veias que nem cheguei a sentir frio. Adentrei o banheiro e despi-me, tomando o cuidado de deixar a porta entreaberta. Os minutos se arrastavam. Sorri ao ouvi-lo tirar a rolha da garrafa: Vicent finalmente estava em minhas mãos. Dentro de poucos minutos, o alucinógeno começaria a fazer efeito.
A brisa de início de noite empurrou a porta do banheiro, fazendo a pequena fresta aumentar de tamanho. O silêncio, quebrado apena pelo barulho do chuveiro, parecia eterno. Eu podia imaginar aquele pobre homem lá fora, ponderando sobre como proceder. Tentando encontrar uma brecha para escapar de todos os seus princípios morais enganosos, ao mesmo tempo em que devaneava sobre coisas impróprias a meu respeito. Atraído pela sua imaginação, que o fazia pensar em mim.
Poucos minutos depois, a porta tornou a se abrir. Mas dessa vez, não era o vento.

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