quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Morte sobre a Vida


Um dia desses a Morte saiu à rua, silenciada por seus desgostos e amargurada por uma sutil agonia que a acompanhava desde antes dos tempos até depois da eternidade. Sua silhueta era cabisbaixa, e quando vista contra a luz, parecia pequenina e melancólica. Diluiu-se no caminho para recolher algumas almas com hora marcada. Um acidente de carro, na madrugada. Um doente terminal, pela manhã. Uma mulher assassinada, antes do início da tarde. Um senhor muito velho, depois do almoço. E outros: muitos outros.
Caminhava devagar, para buscar um jovem rapaz que não tinha estado nos planos, mais um desses que se vira desgostoso da Vida e já sem esperanças de qualquer possível melhora. Entre a multidão que se esbarrava naquele planeta miúdo demais pra tantas dessas criaturas temerosas de sua presença, a Morte pensava em quando seria seu inevitável encontro com cada uma delas.
Bateu na porta e o rapaz atendeu, ainda sob o choque de estar olhando para si mesmo sem o auxílio de um espelho. E sabendo que aquela visão grotesca era o irremediável, o jovem observava – com um pouco de pesar, inclusive – o próprio corpo estendido no carpete da sala, com uma marca de tiro atravessando-lhe o crânio; um bilhete numa mão, um revólver na outra.
– Boa noite – disse à visitante abertamente esperada, que precisou correr para atender ao chamado a tempo.
– Sim – respondeu ela, olhando-o nos olhos – Uma boa noite, você escolheu. Não são muitos os que desejam me conhecer.
A Morte entrou no apartamento, tirando uma túnica cinzenta com detalhes em azul claro e dourado, enquanto o rapaz observava.
– Perdoe a falta do preto puído e o manto rasgado que vocês humanos esperam – disse ela, quase podendo ler os pensamentos dele – Também tenho os meus caprichos, sabe. E se eu fosse ficar de luto sempre que alguém morre, injustamente, naturalmente, por vontade própria, por vontade alheia ou por causas naturais, já não teria espaço no guarda-roupa para tanto negrume. Vez ou outra, quando acho que devo, até apareço um pouco mais semelhante ao esperado. Mas não tenho uma foice, se quer saber. Inclusive, detesto aquelas coisas: bem como todas as outras coisas que vocês humanos insistem em associar a mim.
– Eu não esperava nada – o rapaz encarou o chão – Quero dizer, eu esperava o nada.
– Sim, sim. Vocês todos têm essa mesma conversa.
– Nós? Os humanos?
– Os suicidas.
– Leões selvagens deixaram suas tocas para habitarem dentro de mim.
– Os leões selvagens mais próximos estão do outro lado um vasto oceano. Não precisa usar tantas metáforas. Sei que suas palavras tão bem ensaiadas soavam belas aos ouvidos de quem o admirava, mas eram vazias aos seus próprios. Por isso você me chamou. Sei que é meu trabalho vir buscá-lo; e é claro que você tem o direito de me obrigar a algumas horas extras. Mas será que o mundo é assim tão insuficiente para que você possa residir em paz?
– Sempre fiz o que acredito ser o certo, sou uma alma livre – respondeu, com convicção.
– Não é mais – disse a morte, apontando para o corpo inerte e sem Vida.
– Se o que pretende com essa conversa é me levar a um estado de arrependimento e amargura, saiba que jamais sairemos daqui. Ninguém, nem mesmo você, pode me convencer de que o que eu fiz não foi o melhor para mim.
– E ninguém, nem mesmo você, pode entender que eu, a Morte, não chamo ninguém: sou chamada. O seu chamado precoce me entristece, mas meus olhos já viram coisas piores pelo mundo dos homens. Sei que tenho o mais terrível trabalho que poderia querer, vagando entre os de sua espécie para buscar os que perecem, dia após dia. Você, meu jovem rapaz, teve propósitos que desconheço, teve sonhos que jamais saberei, teve ambições que jamais se realizarão: pois é trabalho da Vida se encarregar do que você merecia, não meu. Só venho buscá-lo, como que para fazer uma faxina na bagunça que você deixou para trás. Desse mundo você não levará nada além de memórias. E se era reconhecimento ou admiração o que buscava, saiba que nem esses vão na bagagem. Que fiquem claras duas coisas. Primeira: você pode aprender a viver, e de fato, a Vida ensina. Segunda: pode conhecer a Morte. Eu também ensino, mas minha intolerância calejada pelos séculos de serviço, já há muito não permite novas oportunidades, segundas chances e nem recomeço.

"Saiba morrer o que viver não soube." (Bocage)

domingo, 27 de janeiro de 2013

Turbulência


"As coisas têm um brilho que com o tempo se vai."
(Kurt Cobain)

Eu sei o que quero. Só não sei como explicar. Meu eu lírico tirou férias. As palavras calaram-se e foram embora, sem nem olhar para trás. As letras emudeceram-se. Enquanto isso, eu, na minha ira contida, procuro ignorar as contradições. E em algumas horas desesperadas chego até a ter audácia suficiente para ignorar também a realidade, assim meio desconfiada. Não lembrei de esquecer de me preocupar tanto com as incertezas do futuro, cega diante das possibilidades de um desterro não tão feliz quanto o planejado. Cada passo que dou, me retraio por dentro e me contorço em um enorme medo de que o jeito que tenho dado para resolver as coisas não seja o jeito certo. Quero me doar às asas da casualidade, mas meu instinto racional  que irônico, dizendo assim  não permite tanta esperança. Os demônios acordam quando os anjos vão dormir. Se fosse dessas que acreditam em sorte, ousaria dizer que não a tenho. Talvez não tenha justamente por isso, como um castigo por não acreditar nela. Mas a sorte que me perdoe, ouso dizer, pois me tornei perita na arte de desacreditar nas coisas. Sou uma pequena manipuladora de palavras, como alguém que sente prazer em procurar a coisa certa a dizer: e na busca, acaba se deparando com o silêncio das palavras que não disse. Quem vê cara não vê intenção; mas quem ouviu o silêncio escutou tudo o que precisava ser dito.

O Grande Kurt Cobain (1967-1994).

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Edifício Beija Flôr, com acento, por favor



Então, no auge da minha vontade de independência, me mudei para um prédio desses de aluguel barato. Chamava-se Edifício Beija Flôr  com acento, por favor , e era onde ficava meu minúsculo apartamento no sexto andar. Eu chegava do trabalho cansada, com uma vontade contida de matar o meu chefe à machadadas; e um sentimento esquisito de iminente fracasso.
Eu descia do ônibus xingando o motorista dos nomes que eu sabia e daqueles que eu tinha inventado, porque ele fazia questão de passar direto pelo meu ponto, obrigando-me a caminhar quase quatro quadras de volta, para poder chegar em casa. Todos os dias, o velho porco só pisava no freio quando as quatro quadras já tinham-se ido; e ainda sorria marotamente antes fechar a porta e voltar a acelerar, lançando-me um olhar divertido pelo retrovisor. Eu mostrava-lhe o dedo e saía pisando fundo.
Chegava ao prédio ainda resmungando, onde um porteiro que falava um idioma que eu nunca cheguei a saber qual era, tentava conversar comigo em um português de palavras soltas que o pobre pensava fazer sentido. Nunca entendi o que o síndico tinha na cabeça por contratá-lo. Ele gesticulava e falava, depois desistia de tentar ser entendido, rindo do próprio embaraço.
 Então até mais, Seu Bruska, preciso ir agora.
 Varswiszth skulwq hulçhawky volkt.
 Aham, Seu Bruska, vejo o senhor depois.
Ele acenava murmurando alguma coisa parecida com um “adeus” e eu subia, sem saber direito se aquelas coisas indecifráveis que ele dizia eram realmente tão gentis quanto indicava o seu sorrisinho. Havia, ainda, a possibilidade de o Seu Bruska estar tentando me contar que meu apartamento tinha sido roubado ou estava em chamas. Sempre que pensava nas possibilidades negativas, torcia para estar no elevador alguma vizinha dessas bem fofoqueiras, que sabem da vida do prédio todo e contam a quem estiver por perto (principalmente a quem não quer saber). Geralmente Dona Gertrudes era quem eu encontrava, quando ela estava saindo para o seu jogo de bingo noturno. Nenhuma notícia sobre apartamento roubado, mas ela sempre se lembrava de tagarelar sobre sei-lá-quem do quarto andar que chegou tarde e tem uma amante, sobre dona-Fulana que está ficando biruta e seu filho mais velho quer levá-la pra um asilo e sobre a vizinha da frente que está com aluguel atrasado há três meses e vai ser despejada na semana que vem. Quando a porta do elevador se abria e eu finalmente me livrava de sua falação constante, ela provavelmente contaria ao próximo que visse sobre o quanto a moça do 703 é antipática. Que culpa eu tinha se ela era capaz de subir até meu andar somente pelo prazer de ter mais tempo para espalhar seu veneno aos quatro ventos?
Era uma época esquisita, aquela em que eu odiava boa parte de todas aquelas coisas. Ou, ao menos, pensava odiar. Eu não suportava meu chefe. Detestava o motorista do ônibus. Odiava profundamente o lugar onde morava, com um porteiro que falava turco ou sei lá o que, e vizinhas que vigiavam-me o tempo todo. Mas quando olho para o passado e vejo todas aquelas coisas que faziam da minha rotina tão movimentada, do Edifício Beija Flôr tão peculiar e da minha vida tão simples, é que percebo que às vezes superestimamos nossas ambições e desejos de mudar o futuro, em detrimento da percepção da realidade: o exato momento do agora, que é o mais importante de ser vivido, deveria ser encarado com menos aspereza.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Pra você guardei o amor


Guardei um amor. Tão bem guardado, que acabei perdendo. Como um porta-retrato velho, que já não serve a seu propósito, mas passa as horas esquecido dentro de uma gaveta, para empoeirar-se com lembranças que ficaram velhas demais para serem lembradas. Então as coisas saíram do controle quando eu olhei para você por apenas um segundo que foi tempo suficiente pra me apaixonar quinze vezes ou mais. Passei o segundo seguinte odiando a sua tão perfeita imperfeição. E no restante do dia, notei-me como quem acha um porta retrato poeirento na gaveta e quer devolvê-lo: mas já não consegue, porque acaba de decidir que a fotografia merecia ser vista. Quisera eu, sonhadora e melancólica numa tardezinha cinzenta de chuva e lúgubre de monotonia, presentear-lhe com meu amor recém-encontrado.
Perdi a hora e a fome. Como eu quis te chamar pra me amar enquanto o tempo decolava para longe e a comida tinha um gosto, mas não era gosto de você! Depois me vi abatida, entre um estado de serena descoberta e tristonha realidade: não sei teu gosto, só sei teu rosto  e isso tem sido o suficiente para povoar meus sonhos. Entorpecida por um ou dois sorrisos teus, gasto as horas entre abdicações e devaneios, quimeras altivas e desejos abastados de outro olhar seu; um desses que poderei fazer de conta ser meu, só pra meu encanto.
Guardei um amor; e o perdi. E você o encontrou, ainda que sem procurar, em meio a um emaranhado de emoções. Antes que os nós se desatem, porém, gostaria que nós nos atássemos um ao outro pra não soltar nunca mais. 

(Como o texto foi inspirado na música "Pra você guardei o amor", achei justo que este fosse batizado com o mesmo nome! E viva o poeta Nando Reis!)