quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O pesar dos pesares

E eu vi tanta dor nas suas lágrimas, que dentro de mim foi um deletério só. Me conta como posso tirar de ti tudo o que é sofrimento, e eu o farei. Mas não me deixa descobrir sozinha, porque esse teu silêncio tagarela tanta coisa que eu já nem sei o que ouvir. O que me resta é juntar o meu amor ao teu, e permitir me desfazer também.
Não tenho medo de roubar a tua dor. Caso não dê tempo de saquear tudo, ao menos furto um pouquinho. Enquanto você estiver distraído com a minha tentativa de te fazer sorrir, passo de fininho e você nem vê. Porque o teu sorriso é mais lindo que todas as coisas lindas que eu conheço: e é ele que eu busco. Talvez por isso o meu amor caiba em você.
Minha alma pede a tua. E quando eu fecho os olhos, condeno o momento a uma oração silenciosa ao nosso amor. Só que tudo parece tão triste quando os teus olhos cessam de sorrir, que acomete-se a mim uma enorme vontade de parar o tempo só pra não deixar chegar a hora em que você é um menino no meu abraço. Eu vou dizer um pouco de coisas sobre um monte de coisas; e vou hesitar umas três vezes antes de te encarar de frente, só pelo meu medo de te ver com medo. Mas apesar do jeito acanhado e desastrado – ainda que me falte tudo, ainda que me sobre pouco – jamais vou te negar cuidado. Porque eu nasci pra renascer em você.


segunda-feira, 13 de maio de 2013

Entrelaçada



Entrelacei a minha vida na tua feito nossas mãos quando se encontram. E tudo o que eu pensei em dizer se perdeu no canto esquerdo da tua boca. Enquanto a mansidão desse meio sorriso canhoto e sereno me contagiava, permiti que meu amor tocasse no teu. Eu bem sei o que os teus olhos vão estar me dizendo caso eu os encare; também sei o que estás planejando quando sorri assim. Inibida pela proximidade de lábios tão nobres, porém, entretenho-me numa tentativa tola de parecer um pouco menos desajeitada.
A vontade que tenho é de morar no teu abraço. E quando a saudade acorda, já não posso dormir. À medida que parte de mim protesta contra tua ausência; o que resta é outro emaranhado de quereres. O fato é que me vi absurdamente entrelaçada por esse teu jeito metade homem, dois quartos menino. 

(Parabéns para nós, querido!)

terça-feira, 30 de abril de 2013

Suavidade


Ando tão à flor da pele, que um simples toque faz-me estremecer o corpo inteiro. Não me detenho. É um delírio bem vindo, que me sobe pela espinha e dissipa-se num arrepio ofegante. Sinto-me afogada numa enorme onda de prazeres, engolindo as palavras que não tive tempo para dizer. E concluo intimamente que toda dúvida é uma vontade camuflada.
Dentro de mim fiz um mundo, e eu não sou capaz calá-lo. Várias vozes ecoam dentro da minha cabeça. Sabem que estou aqui a ouvi-las, pois subitamente adquirem tons mais sussurrantes. São as vozes da minha centena de pensamentos, denunciando meu desejo desnudo e a vontade que não sou capaz de esconder. E tudo o que eu sei é que quero transbordar. Pois só assim poderei espalhar-me pelos quatro cantos do mundo, e talvez encontrar um lugar que me caiba. 

quinta-feira, 18 de abril de 2013


Existem mais de cento e cinquenta países no mundo que eu ainda não visitei. Mais de sete bilhões de pessoas que eu jamais conheci. Centenas de idiomas que eu não aprendi; de dias que eu não vivi; de sentimentos que eu não senti;  de livros que eu não li; de músicas e de histórias que eu não ouvi...
E, ainda assim, insisto em ficar parada em uma espantosa inércia, contemplando a insignificância de tomar decisões a respeito do meu futuro, enquanto ainda não sei nem sequer quem eu sou.
Mesmo se eu jamais encontrar, será que a caminhada ao menos se mostrará suficiente para que eu descubra o que tenho procurado durante todo esse tempo?

sábado, 30 de março de 2013

Inception of the Clouds


Enquanto eu explicava as centenas de argumentos que explicitavam o fato do meu chefe ser o pior tipo de palerma existente no universo, você bebia seu uísque fingindo que dava a mínima para os meus problemas, resistindo à tentação de olhar para o relógio mais uma vez. Enquanto enxugava copos do outro lado do balcão, o barman nos encarava com certa impaciência, pois éramos um dos três últimos grupos de clientes que restavam: empecilhos declarados do tão aguardado fim do expediente. Então você levou o copo de uísque à boca e, depois de um último gole, depositou o copo sobre a mesa e...
Eu corria, porque a melhor coisa a fazer era encontrar algum lugar para colocar em prática o plano C ou D ou beta – eu já não sabia quantos tinham sido todos aqueles anteriores que deram errado. A única certeza era essa: eu corria rumo ao tudo ou nada. Minha respiração entrecortada fazia um barulho inconstante, contrastando com a velocidade compassada dos meus pés enquanto eu subia as escadas com pressa. E eu sabia, mesmo que não quisesse acreditar, que tudo dependia de que eu chegasse ao terraço antes que eles o fizessem. Ainda faltavam seis ou sete lances de escada, mas...
Lá estava ela. Sorria um sorriso brilhante e sereno, mesmo tendo a mesma certeza que eu tinha: a da morte. Da cama da enfermaria, ela me observava com seus olhos sempre taxativos, como se soubesse de coisas que eu não fazia ideia que pudessem existir. E eu quase era capaz de ver a vida se esvaindo de seu corpo lentamente, feito uma luz fraca que brilha alguns milésimos de segundo e depois se dissipa sem nenhum motivo. Dias? Horas? Minutos? Nem os médicos eram capazes de dizer. E eu tentava não pensar a respeito disso, apesar de...
Você me mandou calar a boca por um instante. O jeito que você disse isso, fechando os olhos com aspereza e esfregando a testa com as mãos, me fez parar imediatamente de falar. Então eu olhei para o seu rosto e, mesmo parecendo meio bêbado – eu conhecia bem a sua falta de tolerância a álcool na corrente sanguínea –, seus olhos continuavam sóbrios. Nos beijamos ali mesmo. E o barman continuava a nos encarar com impaciência por cima de seus copos, pois agora éramos os únicos a impedir que o pub fechasse as portas. Você murmurou alguma coisa inteligível antes de segurar minha mão e ajudar-me a colocar o casaco, depois saímos para a madrugada abaixo de zero e entramos no seu carro. Dirigir na neve não era o seu forte, mas eu tinha talento para gostar dos seus defeitos.
Do telhado de um prédio de dez andares, eu aguardava com uma arma apontada para os outros telhados da vizinhança. Lá embaixo estava ele, o homem que eu precisava proteger, fazendo seu discurso de posse. A multidão ensandecida o idolatrava, balançando bandeiras, gritando e aplaudindo a cada vez que ele fazia uma breve pausa em sua fala. Então, no prédio logo à minha frente, eu os vi. Eram seis deles, vestidos de preto para não serem facilmente notados na escuridão. Antes que a adrenalina fosse embora, atirei. E minha mira se mostrou eficiente na tarefa: pelo menos um estava morto. Abaixei a cabeça, escondendo-me sob o peitoril enquanto os cinco restantes atiravam às cegas contra os prédios da vizinhança. Arriscando-me novamente, outro tiro. Mas a bala somente serviu para denunciar minha posição ao inimigo. A munição estava no fim, e seria tarde demais se eu não agisse com rapidez e destreza. Audaciosamente, fiquei de pé e mirei: tiro certeiro. Em seguida, movendo o braço um pouco para a esquerda, acertei um terceiro na altura do ombro. Os demais caíram depois de algumas tentativas, e somente um restava. Puxei o gatilho para finalmente poder dizer que completara aquela missão, e um clique na arma denunciou que a munição acabara. Sem tempo para qualquer reação, olhei para baixo instintivamente e assisti à queda fatal do homem, da minha missão, e do meu emprego. Um corpo jazia diante da multidão.
Acreditar que milagres existem não seria suficiente para impedir que a vida seguisse seu fluxo natural rumo à morte, feito um rio correndo para o mar. Ela estava indo embora, e eu já não era capaz de protegê-la ou proibi-la de me deixar. Talvez, caso eu ainda confiasse nessas bobagens depois que a solidão tomasse conta da minha existência, eu poderia me apegar à crença de que nos encontraríamos outra vez em algum além. Entretanto, no momento em que os seus olhos perderam o foco e o aperto firme de sua mão na minha foi se afrouxando lentamente, eu percebi que já não acreditava em mais nada.


Nota aos leitores: Parte do desenrolar deste conto foi baseada no filme Inception ("A Origem", assista ao trailer acima); com um quê de outro dos meus filmes favoritos, Cloud Atlas ("A Viagem", assista ao trailer clicando aqui). Isso também explica o título, que à primeira vista parece não fazer sentido. Recomendo imensamente estas duas obras de arte do cinema, caso você tenha gostado deste texto.

Sei

Tenho essa fascinação pelos seus olhos. Eu gosto da linha simétrica entre eles quando você faz de conta que está me lendo, como se eu fosse um livro de contos que você ganhou na infância. E mesmo sabendo o fim, você insiste nos meios, porque tem essa mania de ver as coisas diferentes a cada vez que olha. Você nem sabe – e eu não deveria estar contando –, mas sempre me parece tão imenso quando faz essa cara distraída. Causa em mim certo ciúme, porque me parece que você está pensando em todas as coisas ao mesmo tempo, e não só nas palavras que em mim encontra. Acho que seu começo tem um jeito de metade, e por isso me atrai. Também porque você sorri esse sorriso que, num silêncio brilhante, diz tudo o que eu preciso ouvir. No fim, apenas o meu anseio por pedir que você permaneça assim; sentado meio torto no sofá, com essa expressão sonhadora e pensativa, como se pudesse estender os domínios da sua mente até a minha. E eu sei que seu meio sorriso vai ser um sorriso inteiro quando perceber que eu te sei. E por te saber, descobri o quão fácil é te amar.  

terça-feira, 19 de março de 2013

O Jardineiro: "Parte 2 - Ofício"


Cidade do Rio de Janeiro – Brasil, 17 de Maio de 1966.

O relógio digital ao lado da cama marcava três e quarenta e cinco. Mas Rômulo ainda estava acordado, revirando-se na cama como se o colchão não fosse suficientemente espaçoso para sua inquietação. Vinha sofrendo de insônia desde que fora designado para investigar um caso de assassinatos em série. As mortes começaram a acontecer há quase quatro anos e ainda não existia sequer o menor indício de quem poderia ser o psicopata causador de tal atrocidade. Era como se o assassino se ausentasse por um tempo, e então decidisse matar novamente, só para voltar a ser lembrado.
O detetive Rômulo Leal estava no caso há dois anos e investigara quatro dos ceis homicídios que o psicopata havia cometido na cidade. E apesar da experiência no ramo, não era capaz encontrar a menor ligação entre eles. Era sobre isso que pensava, enquanto encarava o teto do quarto. O contrato dizia oito horas, mas ele trabalhava vinte e quatro: era incapaz de desligar-se da culpa daquelas mortes, além de sentir-se responsável por possíveis assassinatos futuros.
Desistiu de tentar dormir. Vestiu o roupão e caminhou descalço até a cozinha. Preparou uma grande xícara de café – seu companheiro fiel, dede que deixou de ser fumante – e sentou-se diante da televisão para checar a programação da madrugada. A bebida estava amarga; pois fazia dois dias que o açúcar tinha acabado, e ele não se lembrava de reabastecer a cozinha há muito tempo. Até porque suas refeições consistiam em sanduíches pouco saudáveis ou pratos exóticos em restaurantes baratos, desde que Rebecca pediu o divórcio. Ela casou-se novamente há cerca de seis meses e Rômulo assistiu à cerimônia sem fazer alarde – sentado ao lado de Sara, a filha de nove anos do ex-casal, que insistiu para que o pai fosse convidado.
Ele tinha quarenta e três anos, estava separado há quatro, morava sozinho num apartamento desorganizado e trabalhava como detetive de polícia. Sua vida era baseada em trabalho e insônia, talvez porque não havia muitas outras coisas que importavam. Costumava dizer que era o homem do tipo mais comum existente: bem sucedido no emprego, fracassado em todas as outras coisas.
 Na manhã que não tardou a chegar, acordou assustado com o barulho insistente do telefone tocando. A televisão ainda estava ligada e ele se sentia dolorido por ter dormido de mau jeito no sofá. Uma luz fraca atravessava as cortinas, denunciando que já era dia.
– Alô? – disse enquanto esfregava os olhos e tentava se espreguiçar.
– Detetive Leal? – indagou uma voz masculina grave e um pouco apressada.
– Sim, sou eu – respondeu, bocejando.
– Desculpe acordá-lo tão cedo, detetive.
– O que foi que aconteceu?
– Ele matou mais uma pessoa, senhor.
Rômulo anotou o endereço do local do crime e desligou o telefone. Então caminhou até o banheiro com a sensação de ter falhado novamente. Eram sete mortes agora – e ele se sentia culpado por ser incapaz de impedi-las, como deveria ter feito. Tomou um banho quente para relaxar os músculos tensos e não se incomodou em fazer a barba que começava a nascer: pretendia encontrar os legistas ainda na cena do crime. Não pode evitar, entretanto, o impulso de encarar-se por alguns instantes no espelho embaçado diante da pia. Olheiras visíveis chamavam a atenção para os olhos castanhos. O rosto anguloso e a expressão forte mostravam-se imponentes, na companhia dos primeiros fios grisalhos que começavam a aparecer nos cabelos volumosos. Tinha um ótimo porte físico e ainda arrancava suspiros das mulheres, apesar de nunca mais ter se interessado por ninguém depois do divórcio.
Vestiu-se com a primeira coisa que encontrou no armário. Depois pegou as chaves do carro e saiu, trancando a porta por fora. Desceu os quatro lances de escada do prédio, pois concluiu que o elevador demoraria a voltar do décimo sexto andar, além de que precisava se exercitar um pouco: um longo dia o aguardava. Respondeu ao bom dia do porteiro, depois caminhou até a garagem, onde estacionara seu Mustang preto e conversível – que orgulhosamente comprara há um ano e dois meses com algum dinheiro sem uso, esquecido na conta bancária.
Do bolso do casaco, pegou o papel com o endereço e leu novamente. Suspirou fundo antes de colocar a chave na ignição, depois manobrou o carro com cuidado e saiu para a rua agitada das primeiras horas da manhã. Parou num semáforo diante de uma escola, onde crianças apontavam para seu carro e admiravam boquiabertas. Num dia menos tenso, Rômulo teria buzinado e talvez até se exibido um pouco, mas aquela era uma manhã de luto. Depois de dirigir por mais algum tempo, tendo ficado cerca de quinze minutos parado num engarrafamento, finalmente chegou ao seu destino. Do fim da rua, já era possível avistar as três viaturas da polícia e uma ambulância. Uma faixa com listras amarelas e pretas isolava um beco entre dois prédios antigos.
Descendo do carro, Rômulo caminhou devagar rumo ao alvoroço pouco adiante. Adiou os passos como se desejasse não chegar, mas quando abaixou-se para passar pela faixa de isolamento,  prometeu a si mesmo que encontraria o assassino que causara tal atrocidade. Desejou, porém, que essa não fosse mais uma de suas promessas vazias.  
– Detetive Leal! – dissera uma voz apressada – Finalmente o senhor chegou! Por que demorou tanto?
Era Miguel Correa, o estagiário que, desde que pôs os olhos em Rômulo pela primeira vez, jamais o perdeu de vista. Era um bom rapaz, bastante prestativo e curioso, que provavelmente sonhava ser um detetive tão bom quanto o famoso Leal, a quem dedicava tanta estima. Miguel era loiro e tinha olhos claros; apesar de algumas sardas lhe pintarem o rosto, era um jovem atraente. Não muito forte, mas também não muito magro, um tipo bem apessoado e sorridente.
– Você tem um cigarro, Sr. Você-Está-Atrasado? – perguntou Rômulo, sem muito entusiasmo.
– Senhor? – o rapaz levantou as sobrancelhas – O senhor voltou a fumar?
– Estou prestes a fazer isso. É claro, se você tiver um cigarro.
O garoto deu de ombros, depois revirou os bolsos da calça e tirou um maço de Pall Mall. Ofereceu-lhe ao detetive juntamente com um isqueiro, sem dizer mais nada. Rômulo devolveu o objeto depois de tê-lo usado, e caminhou feito uma chaminé ao encontro do chefe de polícia, saboreando a sensação esquecida. Miguel seguiu em seu encalço com os olhos brilhando em uma admiração contida, pisando praticamente nos mesmos lugares em que Rômulo acabara de tirar os pés.
– Manhã movimentada – disse, propositalmente soltando uma baforada de fumaça na direção do senhor gorducho, que parecia precariamente enfiado no uniforme azul escuro, como se os botões pudessem estourar a qualquer momento e voar em todas as direções.
– Negativamente movimentada, devo dizer – acrescentou o chefe de polícia, procurando parecer tão imponente quanto o detetive mais famoso da cidade; e falhando miseravelmente depois de precisar tossir devido à fumaça.
Rômulo prendeu o cigarro nos lábios e remexeu o bolso interno do paletó, onde pegou um bloco de notas e uma caneta.
– Conte-me o que sabe – disse simplesmente.
Uma nuvem sombria pareceu pairar sobre o rosto obeso do homem quando ele falou.
– Temos uma pista, senhor – aqui ele fez uma pausa dramática – E acredite quando digo: aquilo foi um recado para você.

terça-feira, 12 de março de 2013

Como pode o amor abrir portas para o ódio, e os muros que outrora protegiam seu imaculado santuário, agora lhe infligirem a tristeza do cárcere? É inevitável amar o ódio; e tão possível odiar o amor, que estes se tornaram inimigos. 

segunda-feira, 11 de março de 2013

O Jardineiro: "Parte 1 - Psicose"


Cidade do Rio de Janeiro – Brasil, 17 de Maio de 1966.

Andando apressadamente pelas ruas enegrecidas da madrugada nos subúrbios do Rio de Janeiro, a moça espiava com frequência por cima do ombro, pois a estranha sensação de estar sendo observada a afligia.
Com o salto alto marcado a velocidade acelerada e constante de seus passos, o pensamento que lhe ocorria incessantemente era de que não deveria ter ficado até tarde na casa da amiga. Muito menos tido a imprudente ideia de voltar sozinha pelas cinco quadras que a separavam do próprio apartamento. Estudante universitária e feminista declarada, fez questão de parecer independente e ir embora, ainda que a amiga tivesse gentilmente oferecido abrigo por uma noite. Quando finalmente terminaram o trabalho a ser entregue no dia seguinte, porém, a jovem juntou os materiais e se foi, deixando votos de boa noite.
Mas agora que os prédios pareciam sombrios e um silêncio retumbante tomava conta das ruas desertas, ela assumiu intimamente que não se importaria em estar na companhia de um homem em cujos braços pudesse se abrigar. Enquanto desviava das poças d’água causadas pela chuva que se fora há cerca de quarenta minutos, no entanto, seu objetivo maior era chegar logo até o edifício de quatro andares onde morava.
Dobrava a esquina e seguia segurando os materiais junto ao peito, quando um estranho arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Olhou para trás e sentiu uma enorme vontade de colocar-se a correr imediatamente, ao mesmo tempo em que algum tipo de força invisível a paralisou no lugar: estagnada de surpresa.
Um homem parado nas sombras, a pouco mais de dez metros de distância.
Ela quis acreditar que era apenas um qualquer, talvez até um pouco bêbado, tropeçando pelas ruas da madrugada. Mas algo estranho na postura serena que ele apresentava a deixou em um estado que mesclava pânico e curiosidade. Com as mãos nos bolsos e os sapatos lustrosos – um pé no chão, outro encostado no muro –, o homem tinha o rosto obscuro sob a aba de um chapéu.
Ela foi tomada por um medo sem explicação. Todavia, fazendo uso de sua sensatez, concluiu que o sentimento era um equívoco, uma vez que o homem nem sequer a encarava. Com o rosto baixo, observando qualquer ponto no chão próximo ao meio fio. Ele parecia indiferente à presença da moça. E, além do mais, faltavam apenas três quadras para chegar em casa. Pelo sim, pelo não, apressou o passo.
Por mais que ele possuísse um encanto inexplicável, seduzindo-a de um jeito bizarro, a moça tomou o cuidado de não olhar mais para o homem. E, chegando ao outro lado da rua, já era capaz de vislumbrar o contorno da pequena praça que ficava em frente ao edifício onde morava.
Que boba, eu sou!, pensava consigo mesma, Qual é o problema de voltar sozinha? Nem sequer um problemazinho para me preocupar!
Esboçando um sorriso de contentamento, olhou para trás já quase sem se lembrar do homem que há pouco notara. Mas ele estava lá. O choque foi grande ao perceber que, ao invés de ter ficado para trás, estava mais perto que antes. A moça levou a mão à boca, sentindo o coração acelerar-se de uma maneira inquietante, adquirindo uma pulsação descompassada. Pôs-se a caminhar com mais pressa, observando-o pela visão periférica. O estômago revirou-se em um salto, ao perceber que o desconhecido a estava seguindo.
Caminhou mais depressa; até perceber que corria, perseguida por um homem desconhecido. Tentou pegar as chaves enquanto disparava pela calçada, mas ele estava a pouca distância. Concluiu então, em um momento de total domínio da insanidade e do desespero, que deveria continuar correndo e procurar despistá-lo. Não se cansaria tão facilmente, sabia, pois era membro da equipe de atletismo na faculdade e tinha um ótimo porte físico. Era possível que pudesse voltar para o apartamento sem ser notada pelo homem.
Correu.
Largou os materiais no chão para evitar o peso e correu tanto quanto poderia: talvez um pouco mais. Tinha os olhos assustados e cheios de lágrimas ao perceber que, tão próximo do abismo da exaustão, ainda estava sendo incessantemente perseguida. Lutava contra os próprios limites, libertando um instinto de sobrevivência quase selvagem, que a fazia deslizar pelas ruas escuras.
A essa hora já nem sabia mais o quanto correra ou a que distância estaria seu apartamento; completamente perdida no tempo e no espaço. Os pulmões estavam fracos demais para conseguir juntar fôlego suficiente para gritar. E, além do mais, isso só denunciaria sua presença: ele rapidamente a encontraria e tudo estaria acabado. Ela esgueirou-se por uma viela estreita, ao mesmo tempo em que a chuva desabou de repente, embaraçando-lhe os cabelos ruivos que caíam sobre o rosto. Em uma tentativa desesperada de despistar o homem, aproveitando que o som de seus passos tinha sido encobertos pelo barulho da chuva, escondeu-se atrás de três ou quatro grandes latas de lixo que encontrou em um beco, agarrando-se a um último e fino fio de esperança.
Não conseguia vê-lo, e barulho da chuva contra a calçada impedia também que pudesse ouvi-lo.  Mas, de alguma maneira, era como se sentisse os passos do homem ali por perto. Perto demais. Mas então voltou a acalmar o coração, gradualmente trazendo a respiração para um ritmo mais lento. Ele se fora. Por alguns segundos, ela chorou – mas chorou de alívio, pois estava a salvo. Unindo todas as forças que lhe restaram, ela pôs-se de pé.
Caminhando rumo à única saída, entretanto, um grito que deveria ecoar por toda a cidade morreu na garganta, quando ela ergueu os olhos e notou seu assassino parado a poucos metros de distância.

PRÓXIMA PARTE: Parte 2 - Ofício
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O suspense policial intitulado "O Jardineiro" chegou, como ficou prometido após o capítulo final de "O Crime de Vicent Nicholls". Espero que esta nova história continuada agrade a vocês tanto quanto a ultima. Próximos capítulos em breve! Aguardem novas publicações!

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Vinte e dois de fevereiro



Fazia exatamente sete anos desde a última vez.
Sete longos anos de uma promessa dessas, aparentemente fadada ao esquecimento, mas que o tempo não foi capaz de varrer da lembrança. “Encontre-me outra vez”, ela dissera. “Quando?” – ele perguntou, incapaz de deixá-la ir. “Nesse mesmo dia, sempre neste dia, nos anos que vierem. Espere por mim no farol.”
Ele chegou antes que o sol nascesse, por não querer cometer o mesmo erro das seis últimas vezes. Estacionou o carro e respirou fundo, quando o pensamento lhe ocorreu. O pensamento que, nos últimos sete anos se provou verdadeiro: Ela jamais veio. E jamais virá. Por que insisto em fazer isso? Centenas de vezes tinha jurado a si mesmo que não faria isso novamente, que não se daria ao trabalho de levar a sério palavras tão vazias; mas era óbvio que, no fim das contas, sempre se agarrava ao último fio de esperança. E se tivesse chegado tarde demais ou ido embora muito cedo, em todos os últimos dias vinte e dois de fevereiro? Talvez ela viesse todos os anos, mas a paciência para esperá-la tivesse sido insuficiente. Será que se mede o amor pelo tempo que se espera? Se sim, sentia-se envergonhado por ter um amor tão pequenino.
Ainda que desativado há anos – talvez décadas –, o farol crescia imponente no topo de uma colina de pedregulhos em frente ao mar. Lá embaixo, a uma altura vertiginosa, as ondas batiam nas pedras e curvavam-se de volta, agitadas com o crepúsculo que lançava uma luz pálida sob as primeiras horas da manhã. Caminhando monte acima com certa dificuldade devido à pouca claridade, o pobre homem solitário observava o contorno do farol esquecido na praia, com suas listras horizontais das cores branco sujo e carmim desbotado. E se perguntava, como sempre fizera, o motivo de ela ter escolhido aquele lugar.
Sentou-se numa pedra olhando para o mar e para a lua, que ainda teimava em brilhar e chamar a atenção, mesmo depois da noite já ter sido deixada para trás e suas horas de glória já tivessem ido com ela. Sentiu a brisa salgada chegar e ir-se embora. Viu os pássaros se alimentarem até que eles e seus filhotes estivessem satisfeitos. Hipnotizou-se por um bom tempo com as ondas. Atirou algumas pedras no mar para passar as horas. Procurou algumas formas em nuvens, apesar de nunca ter sido realmente bom nisso. Percorreu todos os arredores e, por fim, voltou a sentar-se na mesma pedra de antes. A manhã há muito tinha se transformado em tarde; e esta, adquirindo tons avermelhados, preguiçosamente preparava-se para virar noite.
O sol se punha num espetáculo no horizonte, que parecia próximo o suficiente para se nadar até ele. Tocando um mar magnífico e intenso, a enorme bola de fogo parecia ser engolida pela imensidão do oceano. Olhando para cima, num último adeus ao farol, que competia em beleza e esplendor com o por do sol, disse adeus também ao sonho infundado de um dia reencontrá-la. E, descendo a encosta íngreme, por um ou dois segundos, chegou a ter certeza de que sua insistência tinha sido em vão. Instantes depois, entretanto, notando uma nuvem de poeira aproximando-se em alta velocidade, percebeu que um carro acelerava em direção ao farol. Estarrecido pela visão, com o coração a ponto de saltar para fora do peito, continuou parado e imóvel enquanto o veículo de vidros escuros parou a poucos metros de distância.
A porta se abriu. E, sim, era ela.
Correram um para o outro com a saudade impulsionando-lhes ao reencontro. Amaram-se em um abraço. Completos novamente.
– Por que você demorou tanto? – mesmo que as lágrimas pudessem ter sido evitadas antes de saltarem dos olhos, ele não se deu ao trabalho de contê-las, por não ter vergonha de chorar sua felicidade.
A resposta foi curta e risonha: – Tinha esperanças de não encontrá-lo aqui.
– O que quer dizer? – a voz soava preocupada e um pouco soluçante.
Afrouxaram o abraço e olharam-se longamente, antes que ela respondesse.
– Pouparia-me o tempo de pedir desculpas por demorar tantos anos para vir também.



(Baseado em uma história quase real.)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Das incoerências


Olhei-o com desdém. Ostentando um meio sorriso de desprezo, o rosto dele mostrava-se indiferente aos pensamentos que eu acabara de compartilhar. Arrependi-me amargamente por ter permitido que ele soubesse. Desejei poder retirar o que disse, mas quando se fala por impulso, muito se diz e pouco se aproveita.
– Você é tão idiota! – dissemos ao mesmo tempo, depois de um longo período de silêncio e pensamentos atordoados.
O rosto indiferente transformou-se em um esgar de fúria, e a respiração ficou entrecortada. E então eu notei que também respirava com dificuldade. Era como se nós dois tivéssemos aceitado o insulto, não podendo lutar contra uma verdade tão palpável. Mas, ainda assim, não nos detemos. Falamos ao mesmo tempo e em altos tons, numa discussão duradoura. E, ao fim dela, encaramos um ao outro com ar de superioridade. Quem vencera, não sei dizer: provavelmente ninguém. Porém, era sempre eu quem cedia primeiro. Encarando aquele rosto intransigente, desisti de me fazer entender. E nesse instante, sem conseguir me entender comigo mesmo, guardei o espelho e voltei para a cama: obrigado a dormir de mal comigo mesmo. Maldito seja aquele psicólogo da TV, que me fez brigar com a única pessoa com quem eu me entendia!


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

É "E agora?" demais para José de menos. Quando reticências viram ponto final, só o desinteresse sabe ser mais rápido que o interesse.

Com pressa: rumo ao fim


Culpas tão minhas: das muralhas que levantei, cercando o tesouro ao qual deveras dediquei estima – em vão. Consumida pela vaidade e pelas subjetividades que tentei esconder, sinto clamar em mim uma centena de vozes, com pedidos cada vez mais discrepantes. Na real certeza do erro, consomem-se minhas forças enquanto caminho por muitos excessos e uns quantos “nada” – vazia de sentimento.
Agarro o tempo e o prendo entre as mãos, numa tentativa de controlá-lo. Seguro-o em meu domínio como se pudesse ser tua senhora. E, sem perceber, permito-me essa ilusão do controle; enquanto ele silenciosamente se esvai por entre meus dedos, num fim tão rápido que me comove. Guardo-o no bolso, mas seu peso me impede de caminhar, ao mesmo tempo em que desisto de detê-lo. Não se pode aprisionar o que tem sobrenome Liberdade.
Escalei tantas colinas para chegar aqui, que o aqui perdeu o sentido. Caio em tropeços e resvalo em minha fraqueza: onde errôneas certezas contaminam os sonhos que outrora sonhei. Limito-me a ajustar alguns propósitos aos novos dias que chegam e se vão. Assim, entendo a dor de enterrar os vivos; pois as aspirações que tive ainda não puderam morrer. Por entre glórias alheias, saboreio um gosto amargo de moralidades mesquinhas. E na possibilidade de ser o que não fui, acabei me tornando o que não nunca quis ser. Enquanto me fantasio aos olhos do mundo, tenho – intimamente – uma alma nua e um sorriso profundamente contaminado.


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Dores às quais me dou


Então eu sou o infinito; mas um infinito ofendido. Um infinito que tem uma dor latejante lá no fundo, somente esperando meu chamado para poder vir doer abertamente. Meus esforços ineficazes de aprisioná-la gritam em uma agonia cansada. E lançando um olhar sóbrio sob minha embriaguez de todas essas inseguranças doídas, insisto em narrar o que narro porque calar não me basta.
Descobri que a dor dói sem piedade, mas não ouso admitir que me vejo em uma constante procura do lado certo das minhas ambiguidades. Talvez porque sinto como se todas as coisas estivessem sendo vistas de um espelho: constantemente invertidas. E, com facilidade, o tempo se dispersa antes que eu possa tocar suas amarras. Sem poder desatar os nós, me afundo em analgésicos que não farão efeito, porque não é só o corpo que dói. Me dói o certo e o avesso. Me doem os olhos e as mãos. Me dói o sim e o não. Me dói a consciência. As costas. As pernas. Os joelhos. As canções. As ambições. Doem-me as dores.
Tateando no escuro com tudo o que me sobra; percebo que o que falta, falta em demasia. Mas a dor de fracassar dói tanto, que prefiro aguentar todas as outras pra não ter de provar dela.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Morte sobre a Vida


Um dia desses a Morte saiu à rua, silenciada por seus desgostos e amargurada por uma sutil agonia que a acompanhava desde antes dos tempos até depois da eternidade. Sua silhueta era cabisbaixa, e quando vista contra a luz, parecia pequenina e melancólica. Diluiu-se no caminho para recolher algumas almas com hora marcada. Um acidente de carro, na madrugada. Um doente terminal, pela manhã. Uma mulher assassinada, antes do início da tarde. Um senhor muito velho, depois do almoço. E outros: muitos outros.
Caminhava devagar, para buscar um jovem rapaz que não tinha estado nos planos, mais um desses que se vira desgostoso da Vida e já sem esperanças de qualquer possível melhora. Entre a multidão que se esbarrava naquele planeta miúdo demais pra tantas dessas criaturas temerosas de sua presença, a Morte pensava em quando seria seu inevitável encontro com cada uma delas.
Bateu na porta e o rapaz atendeu, ainda sob o choque de estar olhando para si mesmo sem o auxílio de um espelho. E sabendo que aquela visão grotesca era o irremediável, o jovem observava – com um pouco de pesar, inclusive – o próprio corpo estendido no carpete da sala, com uma marca de tiro atravessando-lhe o crânio; um bilhete numa mão, um revólver na outra.
– Boa noite – disse à visitante abertamente esperada, que precisou correr para atender ao chamado a tempo.
– Sim – respondeu ela, olhando-o nos olhos – Uma boa noite, você escolheu. Não são muitos os que desejam me conhecer.
A Morte entrou no apartamento, tirando uma túnica cinzenta com detalhes em azul claro e dourado, enquanto o rapaz observava.
– Perdoe a falta do preto puído e o manto rasgado que vocês humanos esperam – disse ela, quase podendo ler os pensamentos dele – Também tenho os meus caprichos, sabe. E se eu fosse ficar de luto sempre que alguém morre, injustamente, naturalmente, por vontade própria, por vontade alheia ou por causas naturais, já não teria espaço no guarda-roupa para tanto negrume. Vez ou outra, quando acho que devo, até apareço um pouco mais semelhante ao esperado. Mas não tenho uma foice, se quer saber. Inclusive, detesto aquelas coisas: bem como todas as outras coisas que vocês humanos insistem em associar a mim.
– Eu não esperava nada – o rapaz encarou o chão – Quero dizer, eu esperava o nada.
– Sim, sim. Vocês todos têm essa mesma conversa.
– Nós? Os humanos?
– Os suicidas.
– Leões selvagens deixaram suas tocas para habitarem dentro de mim.
– Os leões selvagens mais próximos estão do outro lado um vasto oceano. Não precisa usar tantas metáforas. Sei que suas palavras tão bem ensaiadas soavam belas aos ouvidos de quem o admirava, mas eram vazias aos seus próprios. Por isso você me chamou. Sei que é meu trabalho vir buscá-lo; e é claro que você tem o direito de me obrigar a algumas horas extras. Mas será que o mundo é assim tão insuficiente para que você possa residir em paz?
– Sempre fiz o que acredito ser o certo, sou uma alma livre – respondeu, com convicção.
– Não é mais – disse a morte, apontando para o corpo inerte e sem Vida.
– Se o que pretende com essa conversa é me levar a um estado de arrependimento e amargura, saiba que jamais sairemos daqui. Ninguém, nem mesmo você, pode me convencer de que o que eu fiz não foi o melhor para mim.
– E ninguém, nem mesmo você, pode entender que eu, a Morte, não chamo ninguém: sou chamada. O seu chamado precoce me entristece, mas meus olhos já viram coisas piores pelo mundo dos homens. Sei que tenho o mais terrível trabalho que poderia querer, vagando entre os de sua espécie para buscar os que perecem, dia após dia. Você, meu jovem rapaz, teve propósitos que desconheço, teve sonhos que jamais saberei, teve ambições que jamais se realizarão: pois é trabalho da Vida se encarregar do que você merecia, não meu. Só venho buscá-lo, como que para fazer uma faxina na bagunça que você deixou para trás. Desse mundo você não levará nada além de memórias. E se era reconhecimento ou admiração o que buscava, saiba que nem esses vão na bagagem. Que fiquem claras duas coisas. Primeira: você pode aprender a viver, e de fato, a Vida ensina. Segunda: pode conhecer a Morte. Eu também ensino, mas minha intolerância calejada pelos séculos de serviço, já há muito não permite novas oportunidades, segundas chances e nem recomeço.

"Saiba morrer o que viver não soube." (Bocage)

domingo, 27 de janeiro de 2013

Turbulência


"As coisas têm um brilho que com o tempo se vai."
(Kurt Cobain)

Eu sei o que quero. Só não sei como explicar. Meu eu lírico tirou férias. As palavras calaram-se e foram embora, sem nem olhar para trás. As letras emudeceram-se. Enquanto isso, eu, na minha ira contida, procuro ignorar as contradições. E em algumas horas desesperadas chego até a ter audácia suficiente para ignorar também a realidade, assim meio desconfiada. Não lembrei de esquecer de me preocupar tanto com as incertezas do futuro, cega diante das possibilidades de um desterro não tão feliz quanto o planejado. Cada passo que dou, me retraio por dentro e me contorço em um enorme medo de que o jeito que tenho dado para resolver as coisas não seja o jeito certo. Quero me doar às asas da casualidade, mas meu instinto racional  que irônico, dizendo assim  não permite tanta esperança. Os demônios acordam quando os anjos vão dormir. Se fosse dessas que acreditam em sorte, ousaria dizer que não a tenho. Talvez não tenha justamente por isso, como um castigo por não acreditar nela. Mas a sorte que me perdoe, ouso dizer, pois me tornei perita na arte de desacreditar nas coisas. Sou uma pequena manipuladora de palavras, como alguém que sente prazer em procurar a coisa certa a dizer: e na busca, acaba se deparando com o silêncio das palavras que não disse. Quem vê cara não vê intenção; mas quem ouviu o silêncio escutou tudo o que precisava ser dito.

O Grande Kurt Cobain (1967-1994).

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Edifício Beija Flôr, com acento, por favor



Então, no auge da minha vontade de independência, me mudei para um prédio desses de aluguel barato. Chamava-se Edifício Beija Flôr  com acento, por favor , e era onde ficava meu minúsculo apartamento no sexto andar. Eu chegava do trabalho cansada, com uma vontade contida de matar o meu chefe à machadadas; e um sentimento esquisito de iminente fracasso.
Eu descia do ônibus xingando o motorista dos nomes que eu sabia e daqueles que eu tinha inventado, porque ele fazia questão de passar direto pelo meu ponto, obrigando-me a caminhar quase quatro quadras de volta, para poder chegar em casa. Todos os dias, o velho porco só pisava no freio quando as quatro quadras já tinham-se ido; e ainda sorria marotamente antes fechar a porta e voltar a acelerar, lançando-me um olhar divertido pelo retrovisor. Eu mostrava-lhe o dedo e saía pisando fundo.
Chegava ao prédio ainda resmungando, onde um porteiro que falava um idioma que eu nunca cheguei a saber qual era, tentava conversar comigo em um português de palavras soltas que o pobre pensava fazer sentido. Nunca entendi o que o síndico tinha na cabeça por contratá-lo. Ele gesticulava e falava, depois desistia de tentar ser entendido, rindo do próprio embaraço.
 Então até mais, Seu Bruska, preciso ir agora.
 Varswiszth skulwq hulçhawky volkt.
 Aham, Seu Bruska, vejo o senhor depois.
Ele acenava murmurando alguma coisa parecida com um “adeus” e eu subia, sem saber direito se aquelas coisas indecifráveis que ele dizia eram realmente tão gentis quanto indicava o seu sorrisinho. Havia, ainda, a possibilidade de o Seu Bruska estar tentando me contar que meu apartamento tinha sido roubado ou estava em chamas. Sempre que pensava nas possibilidades negativas, torcia para estar no elevador alguma vizinha dessas bem fofoqueiras, que sabem da vida do prédio todo e contam a quem estiver por perto (principalmente a quem não quer saber). Geralmente Dona Gertrudes era quem eu encontrava, quando ela estava saindo para o seu jogo de bingo noturno. Nenhuma notícia sobre apartamento roubado, mas ela sempre se lembrava de tagarelar sobre sei-lá-quem do quarto andar que chegou tarde e tem uma amante, sobre dona-Fulana que está ficando biruta e seu filho mais velho quer levá-la pra um asilo e sobre a vizinha da frente que está com aluguel atrasado há três meses e vai ser despejada na semana que vem. Quando a porta do elevador se abria e eu finalmente me livrava de sua falação constante, ela provavelmente contaria ao próximo que visse sobre o quanto a moça do 703 é antipática. Que culpa eu tinha se ela era capaz de subir até meu andar somente pelo prazer de ter mais tempo para espalhar seu veneno aos quatro ventos?
Era uma época esquisita, aquela em que eu odiava boa parte de todas aquelas coisas. Ou, ao menos, pensava odiar. Eu não suportava meu chefe. Detestava o motorista do ônibus. Odiava profundamente o lugar onde morava, com um porteiro que falava turco ou sei lá o que, e vizinhas que vigiavam-me o tempo todo. Mas quando olho para o passado e vejo todas aquelas coisas que faziam da minha rotina tão movimentada, do Edifício Beija Flôr tão peculiar e da minha vida tão simples, é que percebo que às vezes superestimamos nossas ambições e desejos de mudar o futuro, em detrimento da percepção da realidade: o exato momento do agora, que é o mais importante de ser vivido, deveria ser encarado com menos aspereza.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Pra você guardei o amor


Guardei um amor. Tão bem guardado, que acabei perdendo. Como um porta-retrato velho, que já não serve a seu propósito, mas passa as horas esquecido dentro de uma gaveta, para empoeirar-se com lembranças que ficaram velhas demais para serem lembradas. Então as coisas saíram do controle quando eu olhei para você por apenas um segundo que foi tempo suficiente pra me apaixonar quinze vezes ou mais. Passei o segundo seguinte odiando a sua tão perfeita imperfeição. E no restante do dia, notei-me como quem acha um porta retrato poeirento na gaveta e quer devolvê-lo: mas já não consegue, porque acaba de decidir que a fotografia merecia ser vista. Quisera eu, sonhadora e melancólica numa tardezinha cinzenta de chuva e lúgubre de monotonia, presentear-lhe com meu amor recém-encontrado.
Perdi a hora e a fome. Como eu quis te chamar pra me amar enquanto o tempo decolava para longe e a comida tinha um gosto, mas não era gosto de você! Depois me vi abatida, entre um estado de serena descoberta e tristonha realidade: não sei teu gosto, só sei teu rosto  e isso tem sido o suficiente para povoar meus sonhos. Entorpecida por um ou dois sorrisos teus, gasto as horas entre abdicações e devaneios, quimeras altivas e desejos abastados de outro olhar seu; um desses que poderei fazer de conta ser meu, só pra meu encanto.
Guardei um amor; e o perdi. E você o encontrou, ainda que sem procurar, em meio a um emaranhado de emoções. Antes que os nós se desatem, porém, gostaria que nós nos atássemos um ao outro pra não soltar nunca mais. 

(Como o texto foi inspirado na música "Pra você guardei o amor", achei justo que este fosse batizado com o mesmo nome! E viva o poeta Nando Reis!)