Um dia desses a Morte saiu à rua, silenciada por seus
desgostos e amargurada por uma sutil agonia que a acompanhava desde antes dos
tempos até depois da eternidade. Sua silhueta era cabisbaixa, e quando vista
contra a luz, parecia pequenina e melancólica. Diluiu-se no caminho para
recolher algumas almas com hora marcada. Um acidente de carro, na madrugada. Um
doente terminal, pela manhã. Uma mulher assassinada, antes do início da tarde. Um
senhor muito velho, depois do almoço. E outros: muitos outros.
Caminhava devagar, para buscar um jovem rapaz que não
tinha estado nos planos, mais um desses que se vira desgostoso da Vida e já sem
esperanças de qualquer possível melhora. Entre a multidão que se esbarrava
naquele planeta miúdo demais pra tantas dessas criaturas temerosas de sua
presença, a Morte pensava em quando seria seu inevitável encontro com cada uma
delas.
Bateu na porta e o rapaz atendeu, ainda sob o choque de
estar olhando para si mesmo sem o auxílio de um espelho. E sabendo que aquela visão
grotesca era o irremediável, o jovem observava – com um pouco de pesar, inclusive
– o próprio corpo estendido no carpete da sala, com uma marca de tiro
atravessando-lhe o crânio; um bilhete numa mão, um revólver na outra.
– Boa noite – disse à visitante abertamente esperada, que
precisou correr para atender ao chamado a tempo.
– Sim – respondeu ela, olhando-o nos olhos – Uma boa
noite, você escolheu. Não são muitos os que desejam me conhecer.
A Morte entrou no apartamento, tirando uma túnica
cinzenta com detalhes em azul claro e dourado, enquanto o rapaz observava.
– Perdoe a falta do preto puído e o manto rasgado que
vocês humanos esperam – disse ela, quase podendo ler os pensamentos dele – Também
tenho os meus caprichos, sabe. E se eu fosse ficar de luto sempre que alguém
morre, injustamente, naturalmente, por vontade própria, por vontade alheia ou
por causas naturais, já não teria espaço no guarda-roupa para tanto negrume. Vez
ou outra, quando acho que devo, até apareço um pouco mais semelhante ao
esperado. Mas não tenho uma foice, se quer saber. Inclusive, detesto aquelas
coisas: bem como todas as outras coisas que vocês humanos insistem em associar a
mim.
– Eu não esperava nada – o rapaz encarou o chão – Quero dizer,
eu esperava o nada.
– Sim, sim. Vocês todos têm essa mesma conversa.
– Nós? Os humanos?
– Os suicidas.
– Leões selvagens deixaram suas tocas para habitarem
dentro de mim.
– Os leões selvagens mais próximos estão do outro lado um vasto oceano.
Não precisa usar tantas metáforas. Sei que suas palavras tão bem ensaiadas soavam
belas aos ouvidos de quem o admirava, mas eram vazias aos seus próprios. Por isso
você me chamou. Sei que é meu trabalho vir buscá-lo; e é claro que você tem o direito de me obrigar a algumas horas extras. Mas será que o mundo é assim tão
insuficiente para que você possa residir em paz?
– Sempre fiz o que acredito ser o certo, sou uma alma
livre – respondeu, com convicção.
– Não é mais – disse a morte, apontando para o corpo inerte
e sem Vida.
– Se o que pretende com essa conversa é me levar a um
estado de arrependimento e amargura, saiba que jamais sairemos daqui. Ninguém,
nem mesmo você, pode me convencer de
que o que eu fiz não foi o melhor para mim.
– E ninguém, nem mesmo você, pode entender que eu, a Morte, não chamo
ninguém: sou chamada. O seu chamado precoce me entristece, mas meus olhos já
viram coisas piores pelo mundo dos homens. Sei que tenho o mais terrível
trabalho que poderia querer, vagando entre os de sua espécie para buscar os que
perecem, dia após dia. Você, meu jovem rapaz, teve propósitos que desconheço,
teve sonhos que jamais saberei, teve ambições que jamais se realizarão: pois é
trabalho da Vida se encarregar do que você merecia, não meu. Só venho buscá-lo,
como que para fazer uma faxina na bagunça que você deixou para trás. Desse mundo
você não levará nada além de memórias. E se era reconhecimento ou admiração o
que buscava, saiba que nem esses vão na bagagem. Que fiquem claras duas coisas.
Primeira: você pode aprender a viver, e de fato, a Vida ensina. Segunda: pode
conhecer a Morte. Eu também ensino, mas minha intolerância calejada pelos
séculos de serviço, já há muito não permite novas oportunidades, segundas
chances e nem recomeço.
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"Saiba morrer o que viver não soube." (Bocage)
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