domingo, 25 de novembro de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo Final

Corri escada acima tão velozmente que, mesmo tropeçando três vezes nos degraus, não me dei o luxo de cair. Eu me curvei um pouco, a princípio de maneira involuntária, depois para tentar esconder-me tanto quanto fosse possível por detrás do corrimão. Dorota atirava sem piedade, mas por sorte, sua mira era terrivelmente ruim. Os tiros passavam a seguros centímetros de distância.
Disparei para o segundo andar da mansão, tomando o cuidado de correr diretamente para o lado oposto da enorme sala, depois de localizar  em uma fração de segundos  o interruptor. O ambiente escureceu-se de súbito; e eu fique cego por alguns instantes, antes de me acostumar com a pouca luz. O fogo da lareira, agora já se apagando, lançava um fraco brilho alaranjado sobre a mobília. E enormes janelas entalhadas criavam faixas consecutivas de luz e escuridão, a partir da claridade das luminárias da rua. Quando eu a ouvi proferir qualquer ameaça lá embaixo, fiz o possível para acalmar meu coração, que pulsava tão forte e tão alto, que cheguei a acreditar que Dorota poderia escutá-lo.
Eu não fazia a menor ideia de quais eram as minhas opções, além daquela em que eu seria assassinado por minha própria esposa. Tentei arquitetar algum plano de fuga, mas agora eu sabia que Dora era perigosa: jamais permitiria que eu saísse a salvo dessa armadilha tão brilhantemente planejada.
Enquanto ouvia passos na escada, me movimentei o mais sorrateiramente possível à procura de algum lugar para me esconder. Por mais que tentasse, Dorota obviamente não conseguia ser silenciosa à minha audição tão aguçada pelo medo e pela adrenalina; ao menos, não tanto ela quanto desejava. Com uma agilidade que não me era comum, ocultei-me atrás de uma armadura medieval, que era mais um membro pouco discreto da decoração exagerada da mansão. Por lá fiquei, prendendo a respiração para não chamar a atenção.
Ela chegou.
Observei-a pela pequena fresta entre o braço e o tronco da armadura de metal, enquanto ela esquadrinhava o ambiente aparentemente deserto. Enquanto procurava, andando devagar e checando cada possível esconderijo, disse-me:
 Acha mesmo que adiar sua morte é uma opção sensata, meu marido?  a voz era calma e letal, quase maníaca  Não é prudente irritar-me! Assim você acabará por me obrigar a lhe presentear com uma morte lenta, querido, mas não quero fazer meu marido sofrer. Ao menos, não muito.
– Não seja tola, Dora querida!  ela rapidamente voltou-se para a direção de onde vinha o som de minha voz, tentando encontrar-me  Antes que me mate, eu a terei imobilizado e pego de volta minha arma.
Aproximou-se devagar, ao mesmo tempo em que corri, evitando passar pela luz para não ser localizado, para detrás da poltrona em frente à lareira. Ela atirou às cegas, pois apenas era possível ouvir-me correr, sem poder ver de onde saí ou para onde fui.
– Sabe, Dora  falei, imprudentemente, procurando uma maneira de distraí-la e irritá-la. Eu agora tinha um plano: faria com que Dorota gastasse toda a munição, para que pudesse me livrar da morte  Quero contar que eu a traí  senti como se o ar tivesse ficando mais pesado; de alguma maneira, eu sabia que atingira o ego de minha esposa vaidosa  Muito bela, a moça. Uma francesa. Você não sabe o quanto aquele sotaque me atrai... Aliás, nem eu mesmo sabia!
Dorota atirou duas vezes na direção da poltrona, e eu corri para o lado oposto da sala. Mas dessa vez, as coisas não saíram como o planejado. Na pressa, esqueci de me esquivar da luz. Dorota atirou mais duas ou três vezes e um dos tiros passou de raspão na minha perna. Desabei sob meu próprio peso, bem diante da claridade que vinha do enorme vitral decorado. Gritei. Sem saber ao certo se o fizera pela agonia, pela dor ou pela derrota. Dorota riu uma risada demente, encontrou o interruptor e reacendeu todas as luzes. Tentei me levantar, mas já era tarde demais. Ela caminhou em minha direção, adiando cada passo para dar os devidos dramas aos meus últimos momentos de vida.
 Você é repugnante, Vicent  disse-me, parando à minha frente.
 E você é demente!  disparei, arquejando, sabendo que já não tinha mais nada a perder.
 Você deveria apresentar um pouco mais de respeito diante de uma mulher traída empunhando uma arma.
 Você deveria parar de falar como se fosse uma mulher digna de algum respeito.
 Tem algumas últimas palavras a dizer?  disse ela, levantando uma das sobrancelhas e tremendo o lábio, seu tique nervoso de quando estava realmente furiosa.
 Tenho  eu disse a frase seguinte bem devagar, pontuando cada palavra  Você é demente.
O tiro. O grito. E a queda.
O corpo de Dorota caiu imóvel bem ao meu lado, ainda com os olhos abertos e os cabelos loiros formando um véu fino sobre o rosto. Logo atrás dela, a pouco mais de dois metros de distância, um menino segurando uma arma. Ele tinha a respiração ofegante e os ombros tensos: exatamente a mesma posição do dia em que o conheci. Christopher.
Ele soltou a arma no chão, com o olhar assustado e a boca escancarada. Aproximou-se correndo e abaixou-se ao meu lado. Suas primeiras palavras foram:
 Ela... ela está...?
 Morta  completei, encarando-o com seriedade. Depois acrescentei:  E você salvou minha vida, garoto.
Ele se deixou cair, espantado. Apoiei-me no chão e segurei-lhe um ombro.
 Ei  os olhos verdes e marejados de Christopher encontraram os meus  Está tudo bem. Acabou.
Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, ele me abraçou com força e chorou ruidosamente; soluçando e molhando todo o rosto e até parte das minhas costas com seu fluxo interminável de lágrimas. Sem saber o que fazer, apenas retribuí, repetindo o que já tinha dito, numa maltrapilha tentativa de acalmá-lo. Poucos instantes depois, o transe do garoto se desfez, quando o som de sirenes distantes pôde ser ouvido. Algum vizinho provavelmente chamara a polícia. Ele me encarou, esperando instruções.
 Vá embora  ordenei.
 Senhor?  perguntou intrigado.
– Vá, garoto! Eu sei me virar!
 Não, senhor! Não!  ele se pôs a gritar, enquanto enxugava as lágrimas com a manga da camisa  Eu posso ajudá-lo a caminhar! Vamos embora juntos, não se preocupe! Eu...
 Não há tempo, Christopher!  interrompi  Não seja tolo! Eu só vou atrasá-lo, e seremos os dois pegos! Você tem que ir agora...
 Não, Sr. Nicholls, por favor...
 Isso é uma ordem, garoto!  gritei, antes que ele recomeçasse  Veja bem, quero que faça o seguinte: saia pelos fundos para não ser visto. E volte ao Bela Vista. Pegue o que for seu e depois vasculhe a minha mala. Vai encontrar algum dinheiro no fundo falso. Não é muita coisa, mas já é o suficiente. Quero que saia de Londres e vá tentar a vida noutro lugar. Eu ficarei bem. Não tem que se preocupar comigo. Nada de mal vai me acontecer... Mas vá depressa! A polícia invadirá a casa em instantes!
Christopher pôs-se a chorar outra vez e abraçou-me novamente.
 O s-senhor  gaguejou, levantando-se  O senhor foi o único que já me fez algo de bom, Sr. Nicholls... Mu-muito obrigado, m-muito mesmo! Um dia, eu sei, nos encontraremos novamente. Eu juro, Sr. Nicholls! Nós nos encontraremos novamente!
Ele virou-se de costas para mim e correu escada abaixo. E eu voltei a me deitar no chão, ao lado do corpo de Dorota, já sem sentir nenhuma dor na perna.
 Espero que sim, garoto  fiz uma pausa e engoli em seco, pensando no quanto um estranho, um menino de rua, foi capaz de se tornar importante para mim tão instantaneamente  Espero que sim, meu filho.
Talvez jamais chegássemos a nos encontrar outra vez; mas Christopher seria, para sempre, o meu garoto.

***

Os primeiros tímidos raios de sol já iluminavam o céu quando dois policiais saíram da mansão, cada qual agarrado a um braço de um Sr. Nicholls manco e algemado. Eram uma ambulância e três viaturas, paradas na rua; uns sete ou oito policiais e dois enfermeiros. Os corpos do irmão e esposa do Sr. Nicholls estavam cobertos por lençóis encardidos, sobre duas macas prestes a serem colocadas na ambulância. Os peritos já tinham ido embora. Também já tinham-se ido meu melhor amigo, Louis; e a francesa, Srta. Fontaine. Todos o abandonaram. Inclusive eu, que o deixei sozinho para a polícia. Do galho de uma frondosa árvore na metade da rua, eu observava aquilo tudo. Escondido.
Eu não chorava. Cheguei a conclusão  depois de minhas lágrimas terem secado  de que era inútil chorar. Nada disso livraria o Sr. Nicholls da cadeia. Tive de me conter para não saltar daquele galho e correr em direção à mansão; para me entregar no lugar dele quando esse pensamento me ocorreu. Seria inútil, eu sabia. E, caso servisse para alguma coisa, eles me prenderiam também. E todo o esforço do Sr. Nicholls para salvar-me teria sido vão. Eu não queria decepcioná-lo novamente. 
Enquanto eu pensava em tudo isso até minha cabeça doer, colocaram-no dentro da viatura. Os policiais conversaram por alguns instantes, depois dois deles também entraram no carro. De cima da árvore, vi-os passarem bem embaixo de mim. De alguma maneira inexplicável, como se um ímã o tivesse puxado, Sr. Nicholls me olhou. Espantado com a minha presença, ele demorou alguns instantes para acreditar nos próprios olhos. Depois sorriu e ergueu as mãos algemadas como quem mostra um troféu. Não parecia feliz, nem triste. Apenas aliviado. E naquele momento, de alguma forma inexplicável, eu soube. Soube que tudo estava bem.


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Meus mais sinceros agradecimentos a todos que acompanharam a história, apesar de todos os atrasos e contratempos. A história continuada, intitulada "O Jardineiro", promete muito suspense e logo mais estará disponível. Espero que dediquem a ela o mesmo carinho e atenção que foram dedicados a esta que acaba de terminar. Aguardem mais informações!
                                                                                                (Larissa S.)

sábado, 24 de novembro de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XVIII


 O que faremos?  perguntei à Louis, tentando conter o desespero.
Ele agarrou meus ombros com força, detonando a bomba de sua fúria.
 O que faremos?! Você ouviu essa mulher? Ela é completamente maluca! É uma psicopata perigosa!
Eu me esquivei dele, depois o empurrei para longe. Ele cambaleou um pouco, ao mesmo tempo em que atingiu o auge de sua raiva. Louis veio em minha direção com os braços estendidos e uma expressão de ira, enquanto tentava agarrar meu pescoço.
 Você não me ouviu, seu bastardo imundo e porco?!  ele gritava, sem se importar em chamar a atenção de toda a vizinhança para a gritaria. Mal sabíamos nós, que enquanto discutíamos, um homem tinha sido assassinado  Se é morrer que você quer, eu mesmo o mato!
 Cale essa boca, Louis!  gritei também, enquanto fugia de suas mãos fortes que me enforcariam na primeira oportunidade  Eu vou entrar lá e não é você quem vai me impedir!
 E o que você quer fazer lá dentro, imbecil? Será que você é surdo? Será que não ouviu bem o que ela disse?
 Ouvi, sim! E vou ajudar o Sr. Nicholls! Vou protegê-lo daquela...
 E quem você pensa que é para conseguir protegê-lo de alguma coisa?! Você mal pode proteger a si mesmo!
Parei de súbito e encarei Louis com uma expressão intransigente. Ele parou também, pego de surpresa.
 Eu sou... o garoto que o Sr. Nicholls tirou da rua. Devo minha vida a ele! E você, Louis, não vai ficar no meu caminho quando posso retribuir tudo o que aquele homem fez por mim. Você fica aqui. Eu vou resolver isso agora.
Virei as costas para meu amigo e caminhei até a casa. Passei direto pela porta da frente, contornando a enorme mansão cor de marfim, e fui para os fundos  onde encontraria a Srta. Fontaine. Lá atrás havia uma pequena sala, como um armazém de ferramentas, construída atrás da casa e em frente à enorme piscina retangular tinha a porta fechada; mas a luz que vinha das frestas estreitas das duas pequenas janelas denunciava que alguém estava lá dentro. Aproximei-me devagar, tomando o cuidado de esquadrinhar o ambiente em busca de observadores antes de prosseguir rumo à porta. Bati duas vezes, depois me escondi no canto esquerdo da pequena sala para descobrir quem sairia lá de dentro sem ser visto. Caso não fosse a Srta. Fontaine, eu daria um jeito de fugir dali sem ser descoberto, e tentaria encontrá-la em outro lugar. Mas, para minha sorte e alívio, era ela.
Saí de meu esconderijo e ela encarou-me com surpresa.
 Qu'est-ce que l'enfer “Mas que diabos!”  O que faz aqui, garoto? Não deveria estar vigiando a rua?
 Louis está cuidando disso. No momento, temos um problema maior.
Srta. Fontaine fechou a porta atrás de si.
 O que quer dizer com isso?
Expliquei o que aconteceu rapidamente, para não perder tempo. Ela levou a mão à boca, assustada.
 Je ne peux pas croire! Que faisons-nous maintenant?  “Não acredito! O que vamos fazer agora?”, ela desatou a falar francês durante algum tempo, como se conversasse sozinha. Depois voltou a encarar-me  Sabe o que acontecerá agora, não sabe, garoto?  fiz que não com a cabeça, pois esperava que ela me fornecesse uma solução plausível para organizar essa bagunça toda  Está tudo perdido.
 O que... o que quer dizer?
 Que é melhor irmos embora daqui o quanto antes! O plano falhou! Está tudo acabado! Não há nada que possamos fazer. Vamos sumir antes que sejamos pegos, garoto.
 Não!  gritei, ofegando  Não vou abandonar o Sr. Nicholls!
 Não seja idiota! Não vê que já não pode fazer nada por ele? Vamos embora para que possamos, ao menos nós, ficarmos longe disso tudo!
 Sua vadia repulsiva, covarde e traidora! Pretende deixar o Sr. Nicholls à mercê da própria sorte?
 Olha como fala comigo, seu fedelhozinho...
 Eu falo como quiser!  interrompi, aproximando-me de Srta. Fontaine e fazendo-a encolher-se.
Ela se recuperou rapidamente do susto, recompôs-se e disse:
 Muito bem. Se quer ficar, fique. Eu vou embora.
Sta. Fontaine deu três passos para longe e eu agarrei-lhe o braço esquerdo. Ela praguejou em francês e virou-se irritada. Aproveitei a oportunidade para segurar-lhe a outra mão. Prendi-a com os braços cruzados à frente do corpo, apertando suas mãos nas costas. Ela tentou desvencilhar-se, mas eu era mais forte.
 Eu quero sua arma  ordenei.
 O quê?!  ela perguntou em tom de indignação  Quem você pensa que é?
 Eu sei que você tem uma arma. Entregue-a agora, ou eu a arrasto comigo lá para dentro  ameacei, fazendo sinal em direção à mansão.
Ela ponderou por alguns instantes.
 Está escondida na minha cintura  respondeu, derrotada.
Segurei-a com apenas uma das mãos e vasculhei-lhe o corpo. Quando toquei a arma, inesperadamente, Srta. Fontaine conseguiu soltar as próprias mãos. Ela me pegou de surpresa, mas eu fui mais rápido. Puxei a arma com força e apontei na direção dela. Ela ficou estática por alguns instantes, congelada de medo. Coloquei o dedo no gatilho.
 Acalme-se garoto, podemos ser amigos  Srta. Fontaine levantou as mãos, reconhecendo meu poder diante da situação.
 Não, não podemos.
 Não fique zangado comigo, querido  dizia, de maneira sedosa  Eu só estava tentando escapar. Não é seguro aqui, por isso quis levá-lo comigo. Eu me preocupo com você, está vendo?  ela aproximou-se um pouco. Fiz menção de atirar e ela tornou a falar  Acalme-se! Estou do seu lado! Christopher, não é? Nome bonito... Não fique tão tenso, eu posso ajudar.
 Como?
 Vamos... abaixe essa arma. Eu posso ajudar, não fique tão nervoso  fiz o que ela pediu, meio sem saber por quê. Ela sorriu docemente, mas eu ainda não confiava em suas palavras.
 O que quer de mim?  perguntei, meio que como um teste.
 A pergunta é: o que você quer de mim. Christopher, posso te dar muitas coisas  ela fez uma pausa e olhou-me nos olhos  Tudo o que um jovem como você deseja. É só você me entregar a arma. Eu o levarei daqui, juro. E cuidarei de você. Não há mais nada que você possa fazer por ele. É tarde demais, ela vai matá-lo. Você quer morrer também, Christopher?
Um acesso de fúria tomou conta de mim ao mesmo tempo em que a Srta. Fontaine percebeu que tinha feito a escolha errada das palavras. Voltei a levantar a arma e sibilei entre dentes:
 Vá embora antes que eu me arrependa de não ter puxado o gatilho.
Ela deu três passos para trás, visivelmente apavorada, depois tirou os sapatos e correu para a escuridão.
Mesmo sem um plano ou qualquer motivo racional para entrar na casa, tentei abrir a porta dos fundos. Trancada. Me virei de costas para ela, pensando em entrar pela porta da frente. Mas meu corpo congelou quando um frio atingiu-me o estômago: o som abafado de três tiros, vindos de dentro da casa. Sem pensar duas vezes, soquei a janela mais próxima, cujo vidro estilhaçou-se barulhentamente. Com a ajuda do revólver para não me cortar novamente  arranjara alguns arranhões nas mãos ao quebrar o vidro , fiz uma abertura precária, de forma que eu pudesse passar.
Do lado de dentro, me vi em uma enorme cozinha. Não era muito fácil enxergar na penumbra causada pela luz que vinha do corredor. Foi para lá que caminhei, tomando o cuidado de não fazer barulho e tentar conter minha respiração entrecortada. O silêncio era mortal. Quieto demais. Com minha obsessão por não ser visto, derrubei um enorme vaso de porcelana que descansava sobre uma mesinha. Com uma destreza que eu não sabia possuir, agarrei-o antes que se estilhaçasse no chão e enchesse toda a mansão com o barulho, denunciando minha presença.
Continuei caminhando até me encontrar em uma sala em completa desordem, onde o corrimão de uma escada e a parede logo atrás dela exibiam marcas de tiro. Contornei a grande mesa de mogno para checar mais de perto, e estagnei por alguns instantes quando o corpo inerte de um homem entrou no meu campo de visão. Afastei as náuseas e fiz o possível para não vomitar ali mesmo ao observar as circunstâncias. Foi quando um novo tiro ecoou na mansão, vindo diretamente do segundo andar. Empunhei a arma e encarei a escadaria com determinação.
Céus! Já não tem mais volta: ou saio daqui feito herói... ou morto.” 

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quarta-feira, 21 de novembro de 2012


Sinto sua falta.
Tentei de diversas maneiras afastar a sua imagem dos meus pensamentos;
e apagar de minha memória o som maravilhoso da tua gargalhada.
Não consegui.
E infelizmente, nesse momento,
eu sinto sua falta.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

(im/dis)paridades


Quanto a mim, sacudi a poeira e segui em frente. Não deixei ninguém mais ver minha mudança. Amenidade em demasia não me faz bem. Não gosto quando a vida é devagar. Nem quando falta loucura. E também não gosto quando é morno. Nem quando está tudo mais para menos.
Cansei de me obrigar a viver em par; quero ser ímpar, quero ser uma. Eu. Sozinha.
Rasguei os velhos hábitos e joguei fora desejos antigos. Depois reciclei o que sobrou, só pra ver se valia a pena. A emoção que estiver mais abundante, que se revele. Já não interessa quem eu sou, nem quem serei - o que eu fui, porém, não sou mais. Não quero ser redundante, mas esse sei-lá-como em que me encontro é tão belo e tão triste! É porque tenho, agora, espaço suficiente para entulhar tolices novas.
Me desfiz dos egoísmos, pra ter coragem de desmanchar alguns "nunca" dos quais fiz uso. Também troquei muitos "talvez" por sim e não. Que venham as tribulações e que coloquem minha bravura à prova, pois declaro que estou em busca de minhas próprias epopeias. Se for para lutar, aqui estou. Se for para crescer, aqui estou.
Se for para censurar, entretanto, que volte mais tarde!


Música da banda Muse traduzindo o texto, com uma letra de arrepiar, um arranjo
maravilhoso e um impecável solo de piano de Matthew Bellamy para encerrar. 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Pingos nos is


Eu fecho os olhos e estou em qualquer lugar.
Só que de olhos fechados ou abertos, eu me vi sentada na mesa da cozinha de madrugada, fazendo a idiotice de beber café até meu estômago ofender-se e vingar-se de mim. Não considerei nenhuma outra agonia, porém, enquanto buscava por uma explicação; qualquer uma que fizesse sentido quando eu acordasse de manhã.
A conclusão foi como se um século de asfixias viesse me buscar para um passeio. Como se eu aceitasse o convite.
Eu queria dizer que culpo você.
E, que ainda assim, o agradeço.
E queria lançar-lhe impropérios e vociferar tão ferozmente, até fazer-te detestar-me.
Mas, não. Não há você.
De todos a quem escrevi, nenhum ficou para ler. Não há ninguém a quem culpar ou agradecer há muito tempo. Só a mim. Acho que um novo anônimo me cairia bem. Mas meu melhor sorriso amarelo repele aproximação em demasia; e meu faz-de-conta já há tempos passou do tempo.
O caso é que não me importo por perder o sono um pouco mais. Deixemos o acaso cuidar das coisas.
Café, madrugada e solidão. 

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

ocup(ação)



culpa;
desculpa;
des(culpa);
desculpa não tenho, para meu erro opaco;
mas a culpa, ah!,
essa, sim, ocupa o buraco.

João e Maria


Ausente de rumo, sinto contorcer-me o estômago de uma maneira esquisita; como se eu fosse uma estrangeira dentro de minhas próprias entranhas. Nos momentos mais inoportunos possíveis, sinto florescer em mim um jardim de inquietudes. Às vezes espectros de minhas idealizações; às vezes gritos espantados do futuro; às vezes barulho do presente, com um leve toque de déjà vu.
Sufocada pela minha coleção de sentimentos esmagadoramente espaçosos, barulhentos e imundos; acabo dominada pelas mãos do acaso, que rege as minhas decisões a uma frequência que me leva a acreditar que já não eu, mas ele, está no comando das minhas desnecessárias preferências.
Me peguei sendo forçada a carregar meu orgulho chamuscado para longe; e aderir ao conceito de “antes tarde do que nunca”, a mesma filosofia da qual tive a arrogância de dizer que nunca faria uso  cabe aqui qualquer palavra que você, caro leitor, queira adicionar como insulto. Declaro para todos os fins que aceitarei a ofensa como alguém que a merece.
Exatamente igual à história de João e Maria, as migalhas pelo caminho foram alimento para os pássaros: e eu me perdi numa profunda desorientação, carregando a culpa por todas as minhas esquisitices causadoras de desordem. Dos arrependimentos que tenho, o maior deles é não ter me arrependido. De nada.

sábado, 10 de novembro de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XVII


Eu não amo Vicent. Amo você.”
Foram as seis palavras mais dolorosas que li na vida. Eu não conseguia acreditar que Dora, minha Dorota, poderia ser capaz de dizer algo dessa maneira. Tirei os olhos do papel e encarei o rosto sem vida de Phillip, logo à minha frente. E desejei que fosse eu ali, estirado no chão em seu lugar. E então, como que em um roteiro de teatro, no exato momento em que esse pensamento me ocorreu, ouvi um clique leve logo atrás de mim. Era o barulho de alguém engatilhando uma arma.
A morte. Seria ela uma senhora encapuzada, carregando uma foice? Seria ela um anjo, com feições bondosas? Eu esperei que ela chegasse, para abrandar a dor que me dilacerava por dentro. Mas não veio; e eu achei que meu carrasco estaria esperando para mostrar-me sua face.
Levantei as mãos à altura da cabeça, depois fiquei de pé vagarosamente. Tentei respirar fundo, mas era difícil engolir o choro. Então eu me virei. E não pude acreditar em meus olhos. Cheguei a cogitar a hipótese de estar delirando  e queria que estivesse  mas a suposição de uma alucinação caiu por terra quando ela falou.
 Você estragou tudo, Vicent  o tom de Dorota era acusador.
 V-você...
 Sabe, querido, eu cheguei a acreditar que você não seria capaz de matá-lo  ela comentou de uma maneira descontraída, como se falasse qualquer coisa relacionada ao que eu estava vestindo  Sempre foi um covarde! Mas eu soube manipulá-lo bem...
As palavras sumiram de mim. Tantas indagações quiseram sair de uma só vez que acabaram congestionando a passagem; e entalaram-se todas na garganta. E eu meramente fui capaz de encarar o rosto sereno de Dora, com a boca semiaberta e os olhos esbugalhados de surpresa.
 É uma pena que ele tenha morrido, pobre coitado  ela apontou com a arma para o corpo de Phillip, depois voltou a mirar em mim  Mas o que poderia eu fazer?  Dorota deu de ombros  Antes ele do que eu.
 Do qu... do que v-você está falando?  gaguejei.
Dora soltou uma risada que ecoou pela sala de um jeito extremamente diabólico.
 Francamente, Vicent. Será que podes ser mesmo tão cego?  ela fez uma pausa, com uma das sobrancelhas levantadas  Você se vingou da pessoa errada. Eu matei Marcus Mason.
Meus joelhos cederam e eu caí sobre o chão lustroso, ajoelhado diante da mulher que me enganou durante todos esses anos. Então eu percebi que tinha matado meu próprio irmão. E que acreditei nas palavras doces de Dorota; no jeito inocente da máscara que ela usava, quando na verdade era uma assassina. Phillip morreu. Foi morto por um crime que jamais chegou a cometer.
E meu pai foi assassinado pela mulher que eu amava.
Ela continuou a falar:
 Naquela noite, quando fomos dormir, eu não fazia ideia de que estava prestes a cometer um crime. Na verdade, acho que muitas coisas não saíram bem como o planejado  o olhar de Dora ficou distante por alguns instantes, como se pudesse visualizar o que estava contando  Eu me levantei no meio da noite e para ir à cozinha buscar um copo d’água. Mas no caminho, ouvi sussurros. Imediatamente reconheci a voz de Phillip, que tratava com um homem alto, que ocultava o rosto sobre a sombra do chapéu. Eles falavam sobre o assassinato de um homem, que era você. Ora, Vicent, mas se você morresse... se você fosse assassinado, eu jamais colocaria as mãos na fortuna dos Mason! Eu sempre soube! Sempre soube que eras filho de Marcus! Só alguém muito imbecil não o perceberia! Não, você não poderia morrer. Então decidi tudo muito depressa: eu mataria Phillip. Eu o mataria para que você pudesse sobreviver; e, como único herdeiro, seria dono de tudo o que Marcus o deixasse como herança.
 Eu não... entendo  sibilei  Quem morreu naquela noite foi...
– É, mais uma vez, as coisas não correram como planejei – interrompeu-me  Quando eu corri até a cozinha e agarrei uma enorme faca para matar Phillip, não reparei que o velho Marcus Mason descia as escadarias, tamanha minha adrenalina. Sofria de insônia, aquele velho porco. Voltei para a sala de estar, pronta para esfaquear seu irmãozinho quando ele voltasse para dentro da casa. Mas ao chegar lá, fui pega por Marcus! Imediatamente, ele percebeu o que eu estava a fazer. Dei três passos para trás e ele veio para cima de mim, com os olhos faiscando de ódio e paternalismo. Que escolhas eu tinha? Era ele ou eu.
 Sua desgraçada!  gritei, ficando de pé  Você matou o meu pai! Você o matou e me fez acreditar que meu irmão o fizera! Sua vadia, eu o matei! Eu o matei e ele era inocente!
 Inocente?  Dorota riu ruidosamente  Você ouviu o que eu acabe de dizer? Ele pretendia matar você, seu imbecil! Eu salvei a sua vida!
 Cale essa boca imunda, sua...
 Olha como trata uma mulher armada, Vicent Nicholls! Seu inútil, nem mesmo para herdar o sobrenome do pai você serviu!  debochou, depois fez questão de acrescentar:  És um bastardo, Vicent!
Antes que pudesse pensar em qualquer coisa, eu agarrei-lhe a mão com a arma da mesma maneira que tinha feito com Christopher no dia em que o conheci. Mas era mais fácil controlar uma mulher, que um rapaz. Ela atirou para cima, mas os dois tiros meramente fizeram buracos no teto. De uma maneira muito habilidosa, ela se desvencilhou de mim e conseguiu se soltar. Numa lufada de adrenalina, corri escada acima, quando um novo tiro atingiu a parede logo atrás de mim. Ofegante, ouvi quando ela gritou:
 Você pode tentar, querido. Mas não vai conseguir escapar de mim!
Então era assim que as coisas terminariam. Eu seria morto por minha própria esposa. Mas naquele momento eu não sabia que ainda havia muitos imprevistos esperando para acontecerem. Uns bons; outros nem tanto.

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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Poeta, pobre poeta

O café? Amargo demais. O dia? Deveras tristonho.
A coragem? Não se sabe pra onde, só se sabe que foi embora.
O coração? Feito o café. O poeta? Semelhante ao dia.
E o amor?
Deixou pregado na porta da geladeira um bilhete discreto, dizendo que não volta mais.

Infeliz poeta, que perdeu a poesia.
Pobre homem, abandonado por aquela que eternamente amaria.

Onde encontraria rimas, se não em mulher tão bela?
Onde mais procuraria palavras, se não nas conversas com ela?
Onde estaria a métrica, se não nas curvas que ela tinha?
Que versos seriam escritos, se não mais a chamaria de “minha”?

Um poeta de verdade, nunca perde a maestria.
E é com dor, papel e caneta; que cria uma sinfonia.
Sinfonia sem compassos, nem notas, nem instrumentos;
É um concerto de palavras, pra chorar alguns tormentos.

Poeta, pobre poeta, que perdeu a inspiração,
E no infortúnio do desamor, procura alguma razão:
Inefável é teu sentimento, tão repleto de incoerências
Pelo fim de um amor marcado por reticências...


“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”
         (Fernando Pessoa)



quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XVI


Londres. Quase meia-noite. Uma mulher com cabelos muito loiros, presos em um coque, encarando dois meninos com os rostos sujos, como se há muito não tomassem um banho.
A mulher era eu. E os dois meninos me encaravam com uma expressão engraçada: qualquer coisa entre choque, medo e desespero. Era como se o segredo mais sujo que dois garotos podem guardar não que houvesse possibilidade de isso ser algo de fato tão sórdido tivesse sido descoberto. Um dos garotos, com a boca semiaberta, parecia estar em um conflito interno tão gigantesco que todas as suas capacidades cognitivas foram-se embora; e ele simplesmente ficou paralisado. O outro, um pouco mais velho, mostrava-se espantado: comigo, com minha aproximação, e, principalmente, com a pergunta.
 Vamos, garotos!  bradei, em tom de bronca  Eu não tenho a noite toda! Esta é a casa de Phillip Mason?
Eles se encolheram um pouco, como se não esperassem que alguém com a aparência delicada pudesse gritar tão rudemente. O menino ruivo se levantou de súbito da calçada e encarou-me nos olhos.
 Phillip Mason? – disse-me, de um jeito meio acanhado  Quem é Phillip Mason, senhora?
O garoto tinha um tom inocente na voz; e um jeito de falar gentil, calmo e sereno. Mas eu sabia reconhecer quando uma pessoa estava mentindo. Encarei-o de perto, e seus olhos se arregalaram quando me aproximei com uma expressão de nojo. O outro menino também se levantou, numa tentativa de intimidar-me, para que eu não tentasse nada contra seu amigo. Mas eu não os temia; porque ainda que tentassem parecer assustadores, jamais deixariam de ser meros pobrezinhos assustados. Eu não sentia pena.
 Por que mente para mim, rapazinho? – perguntei.
 Não minto, senhora!  insistiu destemidamente  Só estamos aqui porque...
As palavras do menino foram interrompidas quando, de repente, todas as luzes da mansão às suas costas se acenderam subitamente. Desviei os olhos dele por um breve instante e depois voltei a encará-lo.
 Estarei de volta aqui antes que você possa contar até dois  depois apontei o dedo em seu rosto  Não se mova. Quero que continue aí sentado até que eu volte  eu me virei para o outro garoto, que não dissera uma palavra  O mesmo vale para você.
Eles prenderam o fôlego juntos, sentindo a acidez da ameaça implícita que eu lhes lancei.
Caminhei depressa, deixando a mala ali mesmo na rua. O salto alto cadenciava minha aproximação como em um compasso binário d’uma partitura de piano. Quando cheguei à porta da frente, percebi que não estava fechada. E duas coisas vinham de dentro da casa: uma claridade que emanava do fim do corredor largo, porém curto do hall de entrada, e o som de duas vozes que eu conhecia muito bem.
Empurrei a maçaneta devagar, aumentando o vão para que eu conseguisse passar sem fazer barulho. Mas a porta de madeira maciça era pesada; e um leve ruído foi inevitável. Fiquei imóvel por quase cinco segundos, com a audição tão aguçada que eu sentia como se pudesse ouvir o som de uma agulha caindo sobre o carpete. As vozes, porém, continuaram sua conversa. E eu entrei tomando o cuidado de andar na ponta dos pés, para não fazer barulho com o salto do sapato. Mas eu sabia que, na ponta dos pés ou não, o enorme carpete que se estendia por todo o cômodo abafaria qualquer barulho causado pela minha aproximação. Parei no canto do corredor, observando os dois homens na sala de estar, de uma maneira que eles não conseguiriam notar minha presença.
 Então porque teve que se esconder?  dizia Vicent, tremendo a arma na mão direita.
 Eu tive medo, Vicent! Tive medo de você!  o outro respondia, com a voz estranha de quem sabe que vai morrer; estranho fato sobre as pessoas que eu já constatara anteriormente.
 E porque teria medo se não fosse culpado?  indagou o irmão.
A pergunta me causou um sorriso. Vicent, meu Vicent, tão manipulável. Tão fraco.
Ele prosseguiu com uma conversa quase tão monótona quanto todas aquelas que me obrigou a ouvir durante meses, enquanto definhava sob sua vontade de vingar-se. Até o dia em que finalmente se achou possuidor da solução de todos os problemas: matar o irmão, que matou o próprio pai. E sentiu-se tão astuto por meramente juntar as poucas e simples peças do quebra-cabeça que eu cheguei a ter vontade de debochar de sua infantilidade.
E, enquanto eu vagava para um passado não muito distante encostada na parede do hall, perdi o “Grand Finale” de toda aquela cena dramática que acontecia a poucos metros de distância. Acordando-me dos meus devaneios, o som de um tiro repercutindo pelas paredes e ecoando nos cômodos enormes e vazios de uma casa que já não tinha mais dono. Esquecendo-me de toda a precaução, esgueirei-me para a sala de estar, a tempo de ver Phillip tombar sobre o chão com um baque abafado. Com a respiração ofegante, voltei a me esconder.
O silêncio que se seguiu foi brutal e esmagador. Durante o breve espaço de tempo em que a morte veio, pairou sobre aquela casa, e se foi levando mais uma alma para sua coleção; o mundo pareceu desprovido de sonoridade.
O barulho da arma caindo no chão marcou o momento em que a morte foi-se embora. E então, sem poder conter a curiosidade, espiei com cuidado o que estava acontecendo. “O que esse idiota pensa que está fazendo?”, foi o que me ocorreu, quando vi Vicent se aproximar do corpo do irmão que acabara de assassinar. E então eu percebi, com uma lufada gélida de algum tipo de vento atingindo-me diretamente no estomago, que tudo estava perdido.
Em meio segundo, todos os meus planos foram desfeitos. A outra metade dele, gastei refazendo-os. E enquanto Vicent lia a carta que eu escrevi para Phillip, me aproximei sorrateiramente e peguei a arma que ele deixara caída no chão às suas costas.
A boca seca. As mãos suando. O dedo no gatilho. O momento que eu vinha adiando, mesmo que sem entender meus motivos, tinha chegado.
E o meu pensamento foi: “Dois assassinatos em uma mesma família, em uma mesma casa, em uma mesma noite. Irônico.”
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