Sofie tinha duas mães. Diferente de todos que conhecia
– não
que fossem muitas pessoas
–, nascera duas vezes: uma vez pela pobreza, outra
pela esterilidade. A primeira mãe, tão miserável, tão solitária e abandonada,
dera-a para nascer novamente: entregando a criança de suas entranhas à outra
mulher, uma senhora endinheirada que não podia ter filhos.
Sofie nunca conheceu a mãe biológica. Talvez nem mais estivesse
viva. Quem sabe morrera de fome ou frio, sendo enterrada como indigente. Mas Sofie
jamais se esqueceria do fato de que o amor de sua primeira mãe chegou ao
extremo de permitir que a própria filha fosse criada por outras pessoas –
apenas em troca de que aquela criança tivesse alguma chance.
Eram tempos difíceis. As ruas cheiravam mal, as praças
cheiravam mal, as vidas tinham um cheiro ruim
– e as pessoas, pra usar de
sinceridade, também não cheiravam muito bem. Ninguém era poupado do infortúnio.
Epidemias eram frequentes: traziam a morte a uma infinidade de pessoas por ano.
A fome tornara-se uma companheira constante, levando desesperados a cometerem
coisas horríveis para saciá-la. Viviam todos amontoados em cortiços, só os
ricos tinham casas espaçosas. Homens e mulheres tiravam seu sustento de negócios
quase sempre desonestos, trabalhando em alguma manufatura ou, na maioria dos casos,
do cultivo da terra em fazendas nos arredores do povoado.
A menina Sofie tivera uma sorte inigualável por ter sido
adotada, sabia disso. A outra mãe, idosa senhora, chamava-se Rebecca. Morava em
uma mansão com quase tantos quartos quanto seus muitos anos de vida. Tinha uma extensão
tão grande de bens, que só o dinheiro gasto semanalmente com o dízimo daria
para banquetear um batalhão. Ninguém sabia explicar ao certo de onde vinha
tanta riqueza: Rebecca Toulouse raramente deixava sua mansão e sempre vivera sozinha,
até o dia da adoção de uma criança. Falava pouco, usava longos vestidos pretos
e muitas joias lhe enfeitavam o pescoço, orelhas e braços. Era muito magra e
esguia. Suas mãos e rosto eram enrugadas, seus cabelos outrora castanhos, agora
eram cinzentos. Os olhos pareciam sem vida há muito tempo, da cor de um dia
tempestuoso. Tinha muitos empregados, mas aparentemente nenhum deles era
jardineiro: as plantas à frente de sua mansão eram mal cuidadas e as árvores
estavam secas, dando um aspecto sombrio ao casebre. Todos os moradores do
vilarejo tinham medo do lugar, e corria o boato de que era assombrado pelos
antepassados aborrecidos da família Toulouse.
Quando a notícia de que a velha rica adotara uma criança
caiu no conhecimento de todos, o alvoroço foi geral. Ninguém podia acreditar
que existia um coração bondoso batendo dentro daquela mulher inalcançável. Não era
assim tão fria quanto aparentava, afinal. Como a criança fora parar sob sua
custódia, por outro lado, seria um eterno mistério.

Sofie Toulouse tinha belos cabelos pretos e cacheados, presos
em um penteado impecável ou soltos até o meio das costas. Os olhos eram azuis e
intensos, como se estivesse o tempo todo planejando algo. O rosto era macilento
e corado. Vestia-se com os melhores vestidos, quase sempre ornamentados por
pedras preciosas. E tinha tantos admiradores que os dedos das duas mãos não seriam
suficientes para listá-los.
Quatorze dias depois que Sofie completou dezessete anos, a
mulher que costumava chamar de mãe foi levada pela morte no meio da noite. A idade
avançada de Rebecca Toulouse finalmente chegou ao limite. Pela manhã, quando
acordou, Sofie não encontrou a mãe na enorme mesa da sala de jantar esperando-a
para o desjejum, como era habitual. Preocupada, subiu novamente a grande
escadaria de mármore e bateu à porta do quarto da velha senhora. Chamou uma
vez. Duas. Três. Como nenhuma resposta veio lá de dentro, atreveu-se a entrar,
esperando que a rígida senhora não se zangasse.
A visão que teve foi a seguinte: Rebecca dormia tranquilamente,
mesmo tendo o sol nascido há mais de quatro horas. Cuidadosamente, Sofie abriu
as grandes janelas do quarto e deixou a luminosidade entrar. Depois aproximou-se
da cama e encostou de leve no braço da mãe. Assustou-se ao perceber como estava
fria. Tentou acordá-la, mas a mulher continuava inerte, parecendo mais velha
que nunca. E então a verdade se abateu sobre Sofie: sua mãe estava morta. E aquela
moça, filha de duas mulheres, que ironia: tornara-se órfã duas vezes.
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