quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo V


Imediatamente depois de terminar minha pergunta, já me arrependera amargamente de tê-la proferido. A expressão do Sr. Nicholls mudou de um jeito estranho, passando de sono a um esgar de fúria. Seus olhos se estreitaram quando ele sentou-se na cama.
– Alguém que merece morrer – respondeu-me, falando de um jeito baixo e rouco.
Tentei conter a curiosidade, mas ela sempre me venceu.
– E por que diz isso, senhor?
De repente, o rosto do Sr. Nicholls assumiu uma expressão solene e pensativa. Seu olhar ficou distante por alguns segundos. Suspirou e coçou a cabeça, rendendo-se.
– Eu cresci aqui em Londres, numa grande casa do século passado. Minha mãe era uma mulher pobre, mas se casou com um homem rico. Não por interesse, mas porque o homem prometeu cuidar de mim. E eu aprendi a chamá-lo de pai. Ele tinha um filho, Phillip. Crescemos juntos. Mas desde criança Phill gostava de se mostrar superior zombando de mim. “És um bastardo, Vicent”, costumava dizer. E eu, ingênuo que era, não me importava.
– Deveria tê-lo acertado com um gancho de direita, senhor – comentei, fazendo um gesto de punho no ar – Para ensinar um pouco de bons modos!
– É o que eu deveria ter feito, garoto. Mas não fiz. E as coisas só tendiam a piorar. Durante toda a minha infância, não passei de um capacho; e o passatempo favorito dele era humilhar-me. Mas meu pai sempre esteve mais do meu lado que do dele: amava mais a mim, um ilegítimo honesto, que a um injusto sangue de seu sangue. Quando entramos na Segunda Guerra, Phillip foi para o campo de batalha. Mas foi um covarde por toda a vida! Eu não conseguia sequer imaginá-lo sendo leal. Quinzenalmente enviava-nos cartas exaltando seus feitos, elogiando a si mesmo como um desses narcisistas mentirosos. Por volta da terceira carta, duas coisas ficaram óbvias para mim: a primeira era que ele mentia, e a segunda, que mentia muito mal. Eu não contei a ninguém sobre minha desconfiança, pois meu pai ficaria ainda mais desapontado com a desonra do próprio filho.
– Mas senhor, ele merecia ser desmascarado!
– Eu sei; agora eu sei... Enquanto Phillip estava na guerra, conheci uma mulher. Ela era ingênua e pura. Falava tão docemente que eu me sentia hipnotizado por sua voz. Até que, não podendo mais conter minha paixão, eu a pedi em casamento. Alguns meses depois, porém, o filho d’uma mãe voltou da guerra. Meu pai, orgulhoso, fez uma grande festa para recebê-lo. Nesta noite, vi Phill conversando com minha noiva. Ela parecia inquieta e ele já estava muito bêbado, mas não achei que pudesse ser algo relevante. Mais tarde descobri que ele tentara seduzi-la.
– Oh! Que homem sem honra! – levei uma das mãos à boca e balancei a cabeça com força. Depois, imprudentemente acrescentei: – E ele conseguiu?
­– É claro que não, garoto! Veja como fala! Quer que eu lhe desça o braço?
– Não, senhor! Perdoe meu atrevimento! Apenas falei sem pensar!
– Casei-me com ela... com minha pura Dora! – continuou o Sr. Nicholls – E tudo ia bem, muito bem! Minha mãe morreu meses depois, mas eu estava tão feliz com o casamento que a tristeza veio e se foi rapidamente. Meu pai nos deu uma bela casa como presente de casamento. E um ótimo emprego para que eu pudesse dar à minha mulher todo o conforto que ela merecia. Mas Phillip estava furioso e se consumia de inveja por Dorota ter escolhido a mim – aqui ele fez uma pausa dramática – Numa visita à casa de meu pai, ocorreu algo incrível: Marcus Mason decidiu acabar de vez com toda essa guerra silenciosa entre os dois filhos. E ele o fez contando que eu não era um bastardo.
– Quer dizer... quer dizer que o senhor era realmente filho dele? – eu estava tão envolvido pela história que mal conseguia conter a euforia – Que coisa maravilhosa!
– Phillip, que se fizera de bom moço a noite toda, ficou furioso com a notícia. A primeira coisa que disse foi “Você é uma mentira, meu pai! E eu não vou dividir a herança com esse bastardo!”, ao que eu respondi dizendo: “Não me importo com o dinheiro, Phillip! Faça com ele o que achar que deve! Hoje eu sou o homem mais feliz do mundo, porque tenho o pai que sempre quis!” Minha querida Dorota assistia a tudo. Jamais me esquecerei de suas lágrimas enquanto ouvia a discussão.
– Pobre mulher! Nenhuma dama deveria presenciar tal barbárie!
– O que aconteceu a ela naquela noite foi ainda pior – disse o Sr. Nicholls de um jeito sombrio.
– Oh! Não me diga que está morta, senhor!
– Nem brinque com uma coisa dessas, Christopher! Ocorreu que eu saí de casa para tomar um ar fresco e quem sabe beber um pouco. Deixei minha esposa com meu pai. Acontece que Phillip, no auge de sua insanidade, dopou minha Dorota no meio da noite e realizou seus desejos sujos com ela!
Eu não podia conter o horror. Meus olhos se arregalaram e eu voltei a levar a mão à boca. Maldito seja esse homem, que usou de uma mulher indefesa! Eu o mataria com minhas próprias mãos se fosse preciso! Mas não, isso era algo que o Sr. Nicholls deveria fazer para lavar sua honra. E teria toda a minha ajuda.
– Quando voltei para casa, ele já se fora. Há boatos de que nunca mais voltou. Até porque aquele foi o cenário de seu pior crime.
– Sim, senhor! Ele cobiçou a esposa do próprio irmão!
– Não, garoto. Falo do assassinato.
Mas ele acabara de dizer que a mulher estava viva! Ou será que não disse? Eu já estava tão agitado que mal conseguia acompanhar o desenrolar daquela trama. O Sr. Nicholls pareceu ouvir minha pergunta silenciosa, então disse:
– Ele matou o nosso próprio pai antes que este pudesse me reconhecer como seu filho legítimo.
Ele se levantou e pegou papel e caneta no bolso interno do paletó rasgado e manchado de sangue seco, que jazia sobre o chão à nossa frente. Eu assistia boquiaberto, sem conseguir pensar em qualquer coisa para dizer. O Sr. Nicholls escreveu algo, depois entregou-me.
– Este é o endereço da mansão – disse-me, com olhos marejados enquanto eu lia e memorizava – Creio que Phillip já a tenha vendido há muito tempo. Não faço ideia de onde ele pode estar agora, mas é preciso começar de algum lugar. Quero que você vá até lá e veja se consegue alguma coisa, qualquer coisa. Toda informação é bem vinda.
– Sim, senhor. Eu o farei – caminhei até a porta devagar, depois voltei a encarar o Sr. Nicholls – Senhor?
– Ainda está aqui, garoto? – perguntou irritado.
– Eu só queria saber o que aconteceu depois – justifiquei-me, dando de ombros.
– Vendi a casa e larguei o emprego – respondeu-me simplesmente, depois acrescentou: – Ambas as coisas eram perigosas. Phillip poderia nos localizar e tentar terminar o que começou.
Acenei com a cabeça, saí do quarto e corri pelo corredor, depois desci as escadas pulando dois degraus de cada vez. Como nunca antes acontecera em minha vida, eu tinha agora um objetivo. E esse objetivo era ajudar o Sr. Nicholls em sua vingança. Encontraria Phillip Mason e o entregaria numa bandeja de prata a seu assassino, para que a honra de um homem fosse salva.
Eu corria pelas ruas de Londres. A manhã estava bonita, apesar de o tempo estar mudando. Deveria chover em breve, mas minha excitação não abria espaço para preocupações com possíveis tempestades. Resolvi pegar um atalho por uma rua estreita e pouco iluminada. Antes que eu pudesse voltar à luz do dia, uma mão forte puxou-me e empurrou-me contra a parede mais próxima. A voz era furiosa quando disse:
– Enfim encontrei você, seu cretino! 

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6 comentários:

  1. Finalmente, esse capítulo revelador! Já era hora de sabermos o motivo do desejo de vingança do Vicent. E eu acho muita ousadia de sua parte pelo fato de cada capítulo ser narrado por uma personagem diferente, dá para saber o que cada um se sente diante dessa vingança.
    "(...) desci as escadas pulando dois degraus de cada vez. (...)" é uma expressão usada por uma autora que eu tanto admiro? rs
    E não posso falar mais porque nossas discussões sobre o desenrolar da história já foram feitas, né?! Aguardando o Capítulo VI!!!
    Beijos (:

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    1. Sei que já era hora de contar os motivos dele, mas é divertido enrolar vocês um pouquinho (risos). À tarde devo postar o Capítulo VI, que inclusive já comecei a escrever! Tive várias discussões com leitores que me deram ótimas ideias...
      A propósito, "pular dois degraus de cada vez" é um vício que todos os escritores fãs da JK jamais conseguirão superar!
      Beijos!

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  2. Como o Filipe comentou, capítulo revelador!!!
    Li os capítulos 3,4 e 5 em sequência e mal posso esperar a publicação do 6. Prima... poste logo POR FAVOR! huahau!
    Parabénsss!!!
    Beijos!

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    1. Isso é que é vontade, hein?! Leu os três em sequência e já está ansioso pelo próximo (risos). Vou postá-lo ainda hoje, fique tranquilo...
      Obrigada por acompanhar a história, querido!
      Beijos!

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  3. Acho que já sei quem é que pegou o Chris pela mão! Nossas discussões deram algumas pistas. Mas, falando do capítulo em si, achei muito bem discorrido, bem definido em seus objetivos. Pude apreciar a mente infantil de Chris, que se empolgou com essa história tão complicada na vida do Vicent. Sinceramente, estou curiosíssimo pelos próximos acontecimentos. Não vejo a hora de conhecer a verdadeira face de Dorota, e saber o que tem por traz da vida do Chris.

    Mais uma vez, meus parabéns.
    Beijos!

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    1. Nossas discussões só fizeram você ficar ainda mais curioso, né? (risos) A ideia era fazer o Christopher parecer um garoto inocente. Afinal, que tipo de adulto ficaria animado em participar de uma vingança? Nenhum. Mas para uma criança, chega a parecer brincadeira!
      A vez da Dorota está chegando, aguarde!
      Abraço forte, querido :)

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