segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo IX


Acordei com a pior dor de cabeça que alguém pode ter na vida. Era ressaca misturada com qualquer outra coisa que eu não conseguia dizer o quê. A luz que entrava pelas vidraças encardidas da porta da sacada era veneno para os meus olhos. E até o barulho dos ratos que corriam acima do forro do quarto parecia infinitamente maior. Irritavam-me, todas essas coisas. Latejavam e ecoavam dentro do meu cérebro, como se o que antes ficava fora, pudesse estar passeando dentro dos meus miolos: os ratos, a luz e qualquer outro incômodo. 
A noite passada era uma lembrança distante em minha mente. Um borrão distorcido e confuso, como se eu a enxergasse através de um vidro sujo de poeira. Três coisas eram inteiras em minha memória: uma taça de vinho, uma boca com batom vermelho e uma voz sedutora que fazia perguntas complicadas.
– Bonjour, dorminhoco.
Abri os olhos com dificuldade, tentando esconder a claridade com a mão. Quando consegui focalizar o rosto de quem me falava, percebi que estava diante da Srta. Fontaine. Sentei-me na cama de súbito  arrependendo-me quase instantaneamente, quando o quarto girou em uma vertigem – e encarei-a com dificuldade. Lembranças da noite indo e vindo em ondas de pensamentos.
Tentei falar, mas minha boca estava seca, o que levou a uma crise de tosse. Com algum esforço, sibilei cinco palavras:
 O que você fez comigo?
Ela sorriu daquele jeito indecente. E a resposta foi simples e sincera:
 Eu o dopei.
E então tudo ficou muito nítido, como se uma parte desligada do meu cérebro de repente decidisse voltar a funcionar. Passei as mãos pelos cabelos, sentindo-me nauseado. Flashes de tudo o que aconteceu passaram por minha mente, contando-me a história de uma maneira resumida. Aquela mulher escultural adentrando o meu quarto seminua, a porta do banheiro entreaberta, a mulher, a taça de vinho, novamente a mulher, as perguntas... as respostas.
 Acho que você se lembrou  disse-me, com uma voz risonha.
Cambaleei para o banheiro só de roupa de baixo, tropeçando três vezes no curto percurso até o chuveiro. Tomei um banho para refrescar os pensamentos, sentindo minhas costas arderem, sem poder imaginar o porquê. Depois encarei-me no espelho quebrado diante da pia. Eu parecia mais branco que o normal  talvez pelo susto, talvez pelo vinho. Meus olhos escuros estavam saltados e uma enorme mancha roxa era visível em meu pescoço: quando eu a toquei, me lembrei do motivo dela estar ali. Virei-me de costas para o espelho e encarei-o por cima dos ombros. Finos riscos vermelhos manchavam a pele branca de sangue: arranhões. “Agora está tudo perdido”, pensei. Depois me peguei a devanear sobre centenas de coisas ao mesmo tempo. Três delas, porém, eram as mais frequentes: Dorota, Caterine e a minha traição.
Eu me sentia sujo e culpado. E, por mais que parecesse insanidade, ainda tinha alguma esperança de que nada tivesse acontecido. Então Caterine entrou no banheiro, desfilando seu andar imponente: minhas esperanças ilusórias foram-se embora tão facilmente quanto todos os meus outros pensamentos. Eu precisava saber qual era o tamanho do estrago.
Ela veio em minha direção com aqueles olhos bem delineados que me colocavam na defensiva. Minha cabeça ainda estava dolorida e meus sentidos confusos. Dei três passos para trás, tentando esquivar-me de seu hipnotismo. Não era tão simples assim. Caterine estava tão perto que me vi respirando no mesmo ritmo que ela, sem querer.
Analisou-me com olhos taxativos e depois concluiu:
 Você parece cansado.
Uma ideia me ocorreu.  Precisei do máximo de concentração para não permitir que escapasse por entre meus demais pensamentos confusos pelos efeitos retardatários do álcool. E então eu decidi: se tudo aquilo era um jogo, eu iria vencer. Improvisei minha melhor cara de mau e empurrei Caterine para a parede mais próxima, prendendo-a de um jeito que não poderia se mover. Aproximei a boca de seu ouvido para dizer:
 Eu nunca me canso  ela estremeceu, depois sorriu. Começou a dizer qualquer coisa, mas eu a interrompi:  Quero que me diga o que você sabe.
 E o que eu ganho?  a pergunta era sugestiva. Senti-me tentado a um milhão de respostas, mas forcei-me a dizer aquela que me pareceu mais imparcial.
 E o que você perde?  repliquei.
Ela pensou por um instante, depois sussurrou uma única palavra em meu ouvido. Senti-me agitado  não pela proximidade ou por qualquer coisa do tipo, mas pelo medo.
A palavra foi:
 Tudo.
Eu a soltei. Distanciei-me cambaleante, retomando a expressão assustada. Caterine aproveitou para reassumir o controle da situação, enquanto eu voltava a afundar-me em devaneios. Fui até a mala e vesti qualquer coisa que encontrei. Ela reapareceu, parando na porta do banheiro com seu ar triunfante.
 Eu perguntei  disse-me, com um sorriso torto  e, com os incentivos certos, você respondeu.
 Do que... do que você está falando?  gaguejei enquanto abotoava a camisa.
 Estou falando de Phillip Mason. E do crime que você pretende cometer, Vicent Nicholls  aqui ela me lançou um olhar de falsa compaixão  Não se lembra de nada, querido? A noite passada não foi tão boa para você?
 Você está blefando.
 Sabe que não estou  ela parou diante de mim, com seu rosto a poucos centímetros do meu  E, caso esteja interessado, posso dizer que nós dois podemos nos beneficiar das circunstâncias.
 Não vejo como isso possa ser possível.
Era o que Caterine esperava que eu dissesse. E sua resposta já estava pronta:
 Tenho uma proposta a fazer  disse, e prosseguiu sem que eu mostrasse sinal de interesse  Eu o ajudo. Faço o que for preciso, Vicent. E você me paga como eu mereço.
 Do que está falando, sua desequilibrada?  eu quase gritava.
 Ora, vamos lá, Vicent!  ela falava com impaciência  Acha que eu não sei? Pode parar com o teatrinho! Você só pretende matá-lo porque quer a herança que seu papaizinho deixou para trás... Eu quero a metade do dinheiro!
Levei a mão à boca de espanto.
 Sua desgraçada, o que acha que eu sou?  disparei, contendo minha vontade de esbofeteá-la, para não manchar minha honra batendo em uma mulher  Não é pelo dinheiro! É pelo meu pai! É por minha esposa! É pela minha vingança! Eu farei a justiça que ninguém mais teve coragem de fazer!
Quando percebi já estava gritando, e respirando de um jeito entrecortado. Uma tontura fez o mundo girar mais depressa sob meus pés e eu me sentei de qualquer maneira no chão, antes que caísse. Encostei-me na parede, trêmulo. Caterine não pareceu se abalar. Na verdade, ela quase sorria. Seus olhos brilhavam com a cobiça que lhe transbordava visivelmente. Então eu percebi a idiotice que acabara de fazer.
 Parfait disse, de um jeito meio maníaco  Se esse é o problema, proponho uma mudança de planos: eu te ajudo a matá-lo e fico com todo o dinheiro.
Tentei não gritar ao dizer:
 E se eu disser não?
O sorriso virou uma expressão de fúria.
 Então eu vou à polícia denunciá-lo, Sr. Nicholls. E pior que isso  ela apontou um dedo diretamente para o meu rosto  Antes vou a Phillip Mason.
O sangue gelou em minhas veias. Engoli em seco.
 Você não...
 Seria capaz?  ela completou minha frase  Seria sim  Caterine estendeu-me a mão e eu me vi em um beco sem saída  Temos um trato?
Eu me levante e apertei-lhe a mão estendida, com muito desgosto.
Teatralmente e parecendo ensaiado, Christopher entrou no quarto aos tropeços. Ofegante e suado, com os cabelos ruivos desgrenhados grudados à testa.
 O que houve, garoto?  perguntei, aproximando-me dele e segurando-o pelos ombros.
Chris fez um grande esforço para conseguir falar, em meio a respiração entrecortada:
 Eu... o encontrei... senhor!

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