sábado, 4 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo III


Eu caminhava apressado pelas ruas silenciosas dos subúrbios de Londres, mesmo sem ter nenhum destino. Era por volta de nove e meia quando saí do hotel. As luminárias lançavam uma luz trêmula e fraca sobre a calçada úmida e escorregadia. Era fim de inverno, o frio se fora quase completamente – mas eu caminhava com as mãos nos bolsos e sentia o rosto arder com o vento gelado. Senti vontade de fumar para afastar a frieza da noite; mas tinha esquecido o maço de cigarros dentro da mala. Engoli a saliva e fiz o possível para afastar o pensamento.
A uma distância de cinco quadras do Bela Vista, encontrei uma casa de penhores. A placa na porta dizia “Aberta até as oito da noite”. Praguejei em pensamento. Quanto mais cedo comprasse o que precisava, mais cedo meus planos estariam concluídos. Teria que esperar até a manhã seguinte.
– Uma esmola para um velho pobre – disse uma voz entristecida às minhas costas.
Virei-me devagar. Para meu espanto, o que vi não foi um mendigo, mas um rapaz encapuzado com seu revólver apontado diretamente para o meu peito. Suas mãos tremiam, fazendo tremer a arma. Pela maneira com que se portava, eu tive a certeza de que era apenas mais um garoto amedrontado, levado ao crime pela desgraça social que as grandes cidades enfrentavam.
– Entregue tudo o que tiver valor.
– Você não vai atirar em mim – eu disse, levantando as mãos por precaução.
– Entregue tudo o que tiver de valor! – repetiu o garoto, gritando com sua voz trêmula.
Arquitetei tudo em minha mente com muita rapidez. Num golpe brusco, agarrei a mão do rapaz e tentei arrancar-lhe o revólver. Medimos forças por alguns instantes até que ele pareceu se lembrar de puxar o gatilho. O tiro pegou de raspão na parte interna do meu antebraço. Soltei um gemido de dor, mas não me rendi. Acertei-lhe um chute na canela com tanta força que ele urrou de agonia. Cheguei a supor que quebrara algum osso. Puxei-lhe a arma de suas mãos no momento oportuno de desatenção. Antes que ele pudesse pensar em defender ou proteger o revolver, eu já o apontava na direção de seu peito. 
Derrotado e estirado no chão, o menino chorou.
– Por favor – implorou – Por favor, não atire em mim!
– Tire a máscara – ordenei.
­– Por favor, sou só um pobre menino! Não tenho mais ning...
– Tire a máscara agora! – gritei, e ele obedeceu.
Era um rapazinho ruivo e muito sardento. O rosto estava sujo, as roupas também. Tinha por volta de quinze anos, não mais que isso – talvez menos. Os cabelos eram um pouco compridos, provavelmente por falta de dinheiro suficiente para o barbeiro. O rosto fino exibia indícios de barba, com alguns pêlos que lhe cresciam no queixo e logo abaixo do nariz. Os dentes da frente eram desproporcionais; e ele arfava de cansaço. Os olhos verdes estavam marejados de lágrimas. O medo era evidente em suas feições.
– Qual é o seu nome, garoto?
­– Christopher, senhor – respondeu choramingando – Christopher Craig, todos me chamam de Chris.
Algo me dizia que aquele era mesmo seu nome. Ele não teria pensado em mentir – e nem se atreveria; não com uma arma apontada em sua direção.
– Você atirou em mim, seu pequeno desgraçado – insultei – Sabe o que isso significa?
Ele voltou a implorar por perdão.
– Cale essa boca antes que eu lhe mate, fedelho – o silêncio foi instantâneo e quase completo, exceto pelos soluços – Muito bem, Christopher. Eu tenho uma proposta a lhe fazer.
– Sim, senhor – respondeu desesperado – Qualquer coisa, senhor! Qualquer coisa! Só não me mate, por favor... Por favor!
– Muito bem. Vou lhe dar duas opções. Na primeira você trabalha comigo: eu lhe pago um quarto de hotel, lhe compro roupas novas e dou-lhe o que comer. E você faz tudo o que eu ordenar – aqui eu fiz uma pausa e encarei o garoto com frieza – A segunda opção é bem mais simples: você morre.
– Não! Não! Não, senhor! Por favor! – ele gritava a plenos pulmões, tão alto que cheguei a olhar por cima do ombro para o fim da rua, certificando-me de que estávamos de fato sozinhos – Eu aceito a primeira opção! A primeira!
– Foi o que eu imaginei – fiz uma pausa para pensar um pouco – Onde é que você mora, rapaz?
– Num abrigo para menores na esquina da Theodor Miller com a Principal, senhor! Fica a duas quadras daqui!
– Sim. Agora levante-se.
Ele ficou de pé num salto e eu o segurei pela gola da camisa, puxando-o para bem perto.
– Escute aqui, Chris – senti o garoto estremecer – Se você me trair, eu vou à polícia. Mostro meus braço e a sua arma; e conto o que você fez. Posso inventar algumas coisas mais. E você vai mofar na cadeia pelo resto dos seus dias infectos de desgraça! Será que fui bem claro?
Os olhos dele arregalaram-se de pânico.
– Sim, senhor!
– Quero que volte para casa agora. Pegue tudo o que for seu e me encontre aqui dentro de meia hora. Ou então...
– Sim, senhor! Eu estarei aqui, eu estarei!
Eu o soltei e senti uma pontada no antebraço, onde o tiro tinha passado de raspão. A roupa estava rasgada e o marrom do suéter adquirira uma cor bizarra e avermelhada. O garoto, que observara o meu auto-exame com expressão assustada, não disse nada quando eu acrescentei:
– E me traga algo para fazer um curativo.
Ele saiu correndo e mancando pela rua, e sumiu na esquina seguinte. Era um bom garoto, só não tivera boas oportunidades. Cheguei a sentir pena dele. E peguei-me a imaginar as dificuldades pelas quais ele deveria ter passado, mesmo com tão pouca idade. Nesse sentido, éramos parecidos. A diferença era que eu era bem nascido, os problemas vieram depois que tratei de crescer.
Meia hora depois, Chris estava de volta. Carregando uma trouxa de pano nas costas, mancando ainda mais, pelo peso que carregava.
– Muito bem, você é esperto. Agora vamos.
Voltamos ao Bela Vista. Já passava das onze da noite. O recepcionista ressonava sobre seu jornal, debruçado-se no balcão.
– Mudança de planos – falei, e ele acordou com um sobressalto – Me arrume um quarto com duas camas.
Ele encarou-me com desdém.
– A diária é mais cara.
– Não importa. Faça o que eu digo.
O recepcionista analisou o garoto com olhos criteriosos.
– Você não está me entendendo – disse ele com sua voz asquerosa – O que você pagou hoje mal dá para uma noite noutro quarto.
– Ótimo – falei – Amanhã pela manhã faremos o acerto dos próximos dias.
– O que houve com o seu braço? – perguntou, apontando para o sangramento.
– Um acidente – respondi, depois acrescentei: – E isso não é da sua conta.
O novo quarto, um pouco maior que o anterior, tinha a mesma organização de espaço. No lugar do sofá azul, entretanto, havia uma segunda cama. Os dois abajures das mesas de cabeceiras funcionavam. E havia um pequeno armário de roupas com duas portas ao lado da escrivaninha. No mais, era igual ao dormitório individual – a mesma pintura dourada e florida desbotando; o mesmo carpete acinzentado e poeirento; as mesmas toalhas de renda branca e encardida.
– Escolha a sua cama, garoto. E depois tome um banho – ordenei.
– Banho, senhor? – pela maneira que respondeu, ficava ainda mais evidente que Christopher não era muito adepto de água e sabão.
– Sim, garoto! Banho! Isso é um problema para você?
Ele hesitou um pouco antes de responder:
– Não, senhor – disse por fim, vencido. Ele revirou as coisas na trouxa e depois pareceu se lembrar – Ah, é. Eu trouxe gaze, algodão e álcool. Desculpe, eu sei que é pouco, mas isso foi tudo o que encontrei.
Você quis dizer “roubou”, não é, moleque?, pensei.
– É suficiente. Obrigado.
– Sou bom com curativos, senhor. Talvez eu possa ajudar.
Eu realmente não tinha nada a perder. Fiz que sim com a cabeça. Ele se aproximou e eu tirei o casaco escuro com muita dificuldade. A dor aumentava proporcionalmente aos movimentos que eu fazia. A camisa branca que eu usava estava completamente vermelha – do cotovelo até o pulso. Rasguei a manga na altura do ombro e arranquei-a. Depois estendi o braço para Christopher, que estava com o álcool preparado. Soltei um gemido e encolhi.
­– Desculpe, senhor.
– Está tudo bem – encorajei-o – Você está indo bem.
De fato, na falta de algo melhor, Chris era um bom enfermeiro. Tinha a habilidade de alguém que já fizera aquele procedimento diversas vezes. Quando ele terminou, o curativo era digno de elogios. Estávamos os dois muito sonolentos e já era madrugada: deixamos o banho para o dia seguinte.
Acordei com a claridade que entrava pela porta da sacada batendo em meu rosto. Não deveria ser mais que oito da manhã. Christopher estava sentado em sua cama, encarando-me.
– O que é, garoto? – perguntei, com a característica voz rouca de alguém que acaba de acordar.
– O senhor fala enquanto dorme – disse-me em resposta.
– É? E daí?
– Bem... é que fiquei curioso. Quem é Phillip, senhor?

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Link do Capítulo IV (próximo) 

6 comentários:

  1. M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O!!! Parabéns!!!
    Ass: Luiz

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    1. Obrigada, Luiz! Fico feliz que tenha gostado!

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  2. Parabéns pra você que está conseguindo me deixar mais curioso e ansioso à medida que os capítulos são postados. Continue assim! :)

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    1. E obrigada, pra você que é um dos grandes incentivadores dessa história e desse blog!

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  3. Um capítulo melhor q o outro. Estou ansiosa para ler o próximo.
    Vc está de parabéns Larii!

    By: Biia

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    1. Bianca! Que surpresa, esse seu comentário! Você geralmente me liga eufórica pra dizer o que achou (risos).
      Fico super feliz em saber que você está gostando (:
      Abraço!

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