Eu caminhava apressado pelas
ruas silenciosas dos subúrbios de Londres, mesmo sem ter nenhum destino. Era
por volta de nove e meia quando saí do hotel. As luminárias lançavam uma luz
trêmula e fraca sobre a calçada úmida e escorregadia. Era fim de inverno, o
frio se fora quase completamente – mas eu caminhava com as mãos nos bolsos e
sentia o rosto arder com o vento gelado. Senti vontade de fumar para afastar a
frieza da noite; mas tinha esquecido o maço de cigarros dentro da mala. Engoli a
saliva e fiz o possível para afastar o pensamento.
A uma distância de cinco
quadras do Bela Vista, encontrei uma casa de penhores. A placa na porta dizia
“Aberta até as oito da noite”. Praguejei em pensamento. Quanto mais cedo
comprasse o que precisava, mais cedo meus planos estariam concluídos. Teria que
esperar até a manhã seguinte.
– Uma esmola para um velho
pobre – disse uma voz entristecida às minhas costas.
Virei-me devagar. Para meu
espanto, o que vi não foi um mendigo, mas um rapaz encapuzado com seu revólver
apontado diretamente para o meu peito. Suas mãos tremiam, fazendo tremer a
arma. Pela maneira com que se portava, eu tive a certeza de que era apenas mais
um garoto amedrontado, levado ao crime pela desgraça social que as grandes cidades
enfrentavam.
– Entregue tudo o que tiver
valor.
– Você não vai atirar em mim –
eu disse, levantando as mãos por precaução.
– Entregue tudo o que tiver de
valor! – repetiu o garoto, gritando com sua voz trêmula.
Arquitetei tudo em minha mente
com muita rapidez. Num golpe brusco, agarrei a mão do rapaz e tentei
arrancar-lhe o revólver. Medimos forças por alguns instantes até que ele
pareceu se lembrar de puxar o gatilho. O tiro pegou de raspão na parte interna
do meu antebraço. Soltei um gemido de dor, mas não me rendi. Acertei-lhe um
chute na canela com tanta força que ele urrou de agonia. Cheguei a supor que
quebrara algum osso. Puxei-lhe a arma de suas mãos no momento oportuno de
desatenção. Antes que ele pudesse pensar em defender ou proteger o revolver, eu
já o apontava na direção de seu peito.
Derrotado e estirado no chão,
o menino chorou.
– Por favor – implorou – Por
favor, não atire em mim!
– Tire a máscara – ordenei.
– Por favor, sou só um pobre menino!
Não tenho mais ning...
– Tire a máscara agora! –
gritei, e ele obedeceu.
Era um rapazinho ruivo e muito
sardento. O rosto estava sujo, as roupas também. Tinha por volta de quinze
anos, não mais que isso – talvez menos. Os cabelos eram um pouco compridos,
provavelmente por falta de dinheiro suficiente para o barbeiro. O rosto fino
exibia indícios de barba, com alguns pêlos que lhe cresciam no queixo e logo
abaixo do nariz. Os dentes da frente eram desproporcionais; e ele arfava de
cansaço. Os olhos verdes estavam marejados de lágrimas. O medo era evidente em
suas feições.
– Qual é o seu nome, garoto?
– Christopher, senhor – respondeu
choramingando – Christopher Craig, todos me chamam de Chris.
Algo me dizia que aquele era
mesmo seu nome. Ele não teria pensado em mentir – e nem se atreveria; não com
uma arma apontada em sua direção.
– Você atirou em mim, seu
pequeno desgraçado – insultei – Sabe o que isso significa?
Ele voltou a implorar por
perdão.
– Cale essa boca antes que eu
lhe mate, fedelho – o silêncio foi instantâneo e quase completo, exceto pelos
soluços – Muito bem, Christopher. Eu tenho uma proposta a lhe fazer.
– Sim, senhor – respondeu
desesperado – Qualquer coisa, senhor! Qualquer coisa! Só não me mate, por
favor... Por favor!
– Muito bem. Vou lhe dar duas
opções. Na primeira você trabalha comigo: eu lhe pago um quarto de hotel, lhe
compro roupas novas e dou-lhe o que comer. E você faz tudo o que eu ordenar – aqui eu fiz uma pausa e encarei o garoto
com frieza – A segunda opção é bem mais simples: você morre.
– Não! Não! Não, senhor! Por
favor! – ele gritava a plenos pulmões, tão alto que cheguei a olhar por cima do
ombro para o fim da rua, certificando-me de que estávamos de fato sozinhos – Eu
aceito a primeira opção! A primeira!
– Foi o que eu imaginei – fiz
uma pausa para pensar um pouco – Onde é que você mora, rapaz?
– Num abrigo para menores na
esquina da Theodor Miller com a Principal, senhor! Fica a duas quadras daqui!
– Sim. Agora levante-se.
Ele ficou de pé num salto e eu
o segurei pela gola da camisa, puxando-o para bem perto.
– Escute aqui, Chris – senti o garoto estremecer – Se
você me trair, eu vou à polícia. Mostro meus braço e a sua arma; e conto o que
você fez. Posso inventar algumas coisas mais. E você vai mofar na cadeia pelo
resto dos seus dias infectos de desgraça! Será que fui bem claro?
Os olhos dele arregalaram-se
de pânico.
– Sim, senhor!
– Quero que volte para casa
agora. Pegue tudo o que for seu e me encontre aqui dentro de meia hora. Ou
então...
– Sim, senhor! Eu estarei
aqui, eu estarei!
Eu o soltei e senti uma
pontada no antebraço, onde o tiro tinha passado de raspão. A roupa estava
rasgada e o marrom do suéter adquirira uma cor bizarra e avermelhada. O garoto,
que observara o meu auto-exame com expressão assustada, não disse nada quando
eu acrescentei:
– E me traga algo para fazer
um curativo.
Ele saiu correndo e mancando
pela rua, e sumiu na esquina seguinte. Era um bom garoto, só não tivera boas
oportunidades. Cheguei a sentir pena dele. E peguei-me a imaginar as
dificuldades pelas quais ele deveria ter passado, mesmo com tão pouca idade.
Nesse sentido, éramos parecidos. A diferença era que eu era bem nascido, os
problemas vieram depois que tratei de crescer.
Meia hora depois, Chris estava
de volta. Carregando uma trouxa de pano nas costas, mancando ainda mais, pelo
peso que carregava.
– Muito bem, você é esperto. Agora
vamos.
Voltamos ao Bela Vista. Já
passava das onze da noite. O recepcionista ressonava sobre seu jornal,
debruçado-se no balcão.
– Mudança de planos – falei, e
ele acordou com um sobressalto – Me arrume um quarto com duas camas.
Ele encarou-me com desdém.
– A diária é mais cara.
– Não importa. Faça o que eu
digo.
O recepcionista analisou o
garoto com olhos criteriosos.
– Você não está me entendendo
– disse ele com sua voz asquerosa – O que você pagou hoje mal dá para uma noite
noutro quarto.
– Ótimo – falei – Amanhã pela
manhã faremos o acerto dos próximos dias.
– O que houve com o seu braço?
– perguntou, apontando para o sangramento.
– Um acidente – respondi,
depois acrescentei: – E isso não é da sua conta.
O novo quarto, um pouco maior
que o anterior, tinha a mesma organização de espaço. No lugar do sofá azul, entretanto,
havia uma segunda cama. Os dois abajures das mesas de cabeceiras funcionavam. E
havia um pequeno armário de roupas com duas portas ao lado da escrivaninha. No mais,
era igual ao dormitório individual – a mesma pintura dourada e florida
desbotando; o mesmo carpete acinzentado e poeirento; as mesmas toalhas de renda
branca e encardida.
– Escolha a sua cama, garoto. E
depois tome um banho – ordenei.
– Banho, senhor? – pela
maneira que respondeu, ficava ainda mais evidente que Christopher não era muito
adepto de água e sabão.
– Sim, garoto! Banho! Isso é
um problema para você?
Ele hesitou um pouco antes de
responder:
– Não, senhor – disse por fim,
vencido. Ele revirou as coisas na trouxa e depois pareceu se lembrar – Ah, é.
Eu trouxe gaze, algodão e álcool. Desculpe, eu sei que é pouco, mas isso foi
tudo o que encontrei.
Você quis dizer “roubou”, não é, moleque?, pensei.
– É suficiente. Obrigado.
– Sou bom com curativos,
senhor. Talvez eu possa ajudar.
Eu realmente não tinha nada a
perder. Fiz que sim com a cabeça. Ele se aproximou e eu tirei o casaco escuro
com muita dificuldade. A dor aumentava proporcionalmente aos movimentos que eu
fazia. A camisa branca que eu usava estava completamente vermelha – do cotovelo
até o pulso. Rasguei a manga na altura do ombro e arranquei-a. Depois estendi o
braço para Christopher, que estava com o álcool preparado. Soltei um gemido e
encolhi.
– Desculpe, senhor.
– Está tudo bem – encorajei-o –
Você está indo bem.
De fato, na falta de algo
melhor, Chris era um bom enfermeiro. Tinha a habilidade de alguém que já fizera
aquele procedimento diversas vezes. Quando ele terminou, o curativo era digno
de elogios. Estávamos os dois muito sonolentos e já era madrugada: deixamos o banho
para o dia seguinte.
Acordei com a claridade que
entrava pela porta da sacada batendo em meu rosto. Não deveria ser mais que
oito da manhã. Christopher estava sentado em sua cama, encarando-me.
– O que é, garoto? –
perguntei, com a característica voz rouca de alguém que acaba de acordar.
– O senhor fala enquanto dorme
– disse-me em resposta.
– É? E daí?
– Bem... é que fiquei curioso. Quem é Phillip,
senhor?
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Link do Capítulo II (anterior)
Link do Capítulo IV (próximo)
M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O!!! Parabéns!!!
ResponderExcluirAss: Luiz
Obrigada, Luiz! Fico feliz que tenha gostado!
ExcluirParabéns pra você que está conseguindo me deixar mais curioso e ansioso à medida que os capítulos são postados. Continue assim! :)
ResponderExcluirE obrigada, pra você que é um dos grandes incentivadores dessa história e desse blog!
ExcluirUm capítulo melhor q o outro. Estou ansiosa para ler o próximo.
ResponderExcluirVc está de parabéns Larii!
By: Biia
Bianca! Que surpresa, esse seu comentário! Você geralmente me liga eufórica pra dizer o que achou (risos).
ExcluirFico super feliz em saber que você está gostando (:
Abraço!