sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo II

Faziam quatro dias que eu acompanhara Vicent à estação; e o observara com metade do corpo para fora do trem, a acenar com o chapéu até a curva onde não podíamos mais nos ver. Quatro longos dias que se arrastaram tão lentamente que a demora parecia proposital, para aumentar a agonia da minha espera. Ele passaria um ou dois dias na fazenda de um velho amigo influente, para pedir-lhe algum dinheiro emprestado, depois seguiria para Londres.
– Não demore – recomendei, antes que ele embarcasse – E me escreva assim que chegar ao hotel.
– Estarei de volta em breve.
Ele sorriu e me abraçou, mas seus olhos continuaram tristes como tinham estado nos últimos meses. Lágrimas me escaparam dos olhos quando ele me soltou. Eram dez horas em ponto, o trem estava de partida.
– Não quero que você vá.
Ele me ofereceu um lenço que tirou do bolso externo do paletó.
– Dora...
– Não – interrompi, antes que ele recomeçasse seu discurso – Eu sei. Não diga mais nada.
Continuei acenando e enxugando os olhos por um longo tempo, mesmo depois de o trem ter feito a curva, lançando fumaça no ar. Eu me sentia completamente infeliz. E sabia que era perigoso. Mas também não podia negar o quanto tudo aquilo tornara-se necessário.
O gosto do beijo dele ainda estava em minha boca quando sentei-me no banco mais próximo. Alguma coisa me fazia acreditar que meu amado talvez pudesse retornar triunfante no próximo trem; mas esse veio, e se foi – sem trazer-me Vicent de volta.
O grande relógio da torre da estação marcava onze horas e trinta minutos quando eu reuni coragem suficiente para deixar a plataforma de embarque. A manhã estava clara e as aves cantavam alegres nas árvores da praça central, em um coro de sopranos e contraltos graciosamente organizados. Mas eu estava triste demais para conseguir admirar-lhes, como teria feito em outros tempos.
Atravessei a rua e segui rumo à parte baixa da cidade. Era perigoso para uma dama andar desacompanhada por ruas sombrias e escuras como aquelas, em que a noite parecia mais clara que o dia. Mas eu não tinha escolha. Nossa casa ficava exatamente na metade da Rua Paraíso – onde, ironicamente, a fumaça das chaminés dos cortiços e da metalúrgica deixavam o ar pesado, enegrecido e rarefeito. Muita gente morria por decorrência de doenças causadas pela poluição do ar naquele bairro. Pneumonia e asma eram também muito comuns entre os moradores.
Entrei na mercearia que ficava na esquina da rua onde eu morava, onde vegetais murchos e carnes secas se amontoavam nas prateleiras baixas de madeiras. O balcão ficava no extremo oposto do cômodo retangular, cuja iluminação insuficiente se dava através de janelas estreitas no alto das paredes encardidas.
Escolhi algumas batatas e cenouras, apanhei três ovos e passei direto pelas carnes, que estavam rodeadas por uma costumeira nuvem de moscas – nós não tínhamos dinheiro suficiente para pagar por elas há muito tempo. Caminhei até o balcão.
– Muito bom dia – cumprimentei com simpatia ao dono da mercearia. Era um velho gorducho e barrigudo, que passava o tempo todo vestindo um avental sujo do sangue dos animais que criava e matava para vender. Sempre estava mastigando um palito de dente, de uma forma nojenta e grotesca. O grande bigode grisalho e volumoso completava-lhe a aparência desagradável.
– Sim – respondeu-me com grosseria – Vai pagar por isso? – ele tirou o palito da boca e usou-o para apontar para as batatas, cenouras e ovos que eu segurava com certa dificuldade.
– Eu... eu pensei que o senhor pudesse acrescentar essas coisas na conta do meu marido, se não se importar.
O velho passou dois dedos pelo bigode, analisando-me. Depois aproximou-se de mim tão abruptamente que estremeci. Quando ele falou, pude sentir o cheiro de seu hálito apodrecido:
– E quem é o seu marido? – a voz era ameaçadora e gutural, lembrando o rugido de um leão enfurecido.
– Nicholls – respondi, com os olhos arregalados de medo – Vicent Nicholls.
O dono da mercearia afastou-se de mim, pigarreou alto e escandalosamente, depois cuspiu no chão.
– Pois diga a seu marido, Sra. Nicholls, que enquanto não pagar o que me deve – nessa parte, ele já estava gritando e sujando-me de saliva – nada do que está nesse estabelecimento será vendido para ele! Será que fui claro?
Humilhada e abatida, saí de volta à escuridão do dia na Rua Paraíso. Olhei para ela com desgosto. Oito casas amontoadas de um lado; sete casas e a mercearia, do outro. A rua de pedra era estreita e estranhamente lamacenta em algumas partes. A calçada era suja e propícia à proliferação de pragas que transmitiam mais doenças – como se as causadas pela poluição já não nos fossem suficientes. As fachadas dos cortiços de três andares eram iguais, pertenciam ao mesmo dono.  Todas cinzentas e melancólicas. Estavam mortas e tristes há muito tempo, feito seus inquilinos empobrecidos. Não haviam árvores. Os pais não permitiam que suas crianças brincassem na rua. Não havia felicidade.
Mas eu tinha esperanças de abandonar aquela rua de uma vez por todas, para nunca mais voltar. Se Vicent fosse bem sucedido em seu plano, nos mudaríamos em breve para um paraíso de verdade.
Quatro dias depois do incidente com o dono da mercearia, olhando pela janela do segundo andar onde ficava o nosso apartamento, observei o carteiro aproximar-se em sua bicicleta desengonçada. Desci a escadaria correndo a tempo de pegar a correspondência das mãos dele, poupando-lhe o trabalho de colocá-las na caixa do correio.
Eu estava trêmula quando notei a caligrafia de Vicent. Li a carta três vezes para me certificar de que não deixara nada passar. Não havia muito a entender; era curta e direta – bem ao estilo de meu marido. Corri para o quarto, peguei papel e caneta e sentei-me à mesa diante da janela para escrever.


Colchester, 24 de Março de 1950.

 Querido Vicent,
                              A falta que a sua presença me faz não pode ser descrita em palavras. Choro só de imaginar pelo que você está passando. Estou certa de que conhece a minha opinião sobre toda essa loucura que não lhe sai da cabeça. É claro que não entendo o motivo do seu desejo de lavar a alma com sangue. Não vale a pena, meu amado. Sei que acredita estar fazendo a coisa certa; e convencê-lo do contrário é uma tarefa que falhei em realizar. Sendo assim, espero que tudo dê certo: devo lembrar-lhe que preciso do meu marido de volta. As coisas não estão fáceis por aqui também.
Saber que você está mal instalado me entristece. Sei que estamos acostumados a pouco luxo, mas cheguei a pensar que seu velho amigo lhe emprestaria uma quantia suficiente para pagar um hotel confortável. Percebo que estava enganada, apeguei-me a uma esperança vã e ilusória.
Sabendo o que você pretende fazer, só me resta desejar sorte. Espero que volte para mim em breve, Vicent. E que o seu desejo de vingança não esconda a pessoa maravilhosa que você é.
Com muito amor,
Dorota

Peguei papel e caneta para escrever uma segunda carta, dessa vez para outro destinatário. Mas antes reli a designada a Vicent, para me certificar de que parecera realmente convincente. Eu conhecia muito bem o homem com quem me casara. E tinha certeza de que nada poderia encorajá-lo tanto quanto um desencorajamento. Era como se o desafiasse. Seu ego era tão exacerbado que ficaria ainda mais cego pelo desejo de vingança que o consumia.
Mal sabia ele que estava prestes a matar a pessoa errada.

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Link do Capítulo I (anterior)
Link do Capítulo III (próximo) 

7 comentários:

  1. Larissa, estou com muita raiva agora que acabo de ler o segundo capitulo. Pois ficarei ainda mais ansiosa esperando pelo terceiro.
    Beijos, Camila.

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    1. Camila, era exatamente essa a ideia (risos).
      O próximo capítulo sai em breve, prometo!

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  2. Estou adorando a história do Vicent. Suas descrições são perfeitas. Vou confessar uma coisa à você: não vou parar de me coçar de curiosidade até que algum crime aconteça. Espero que o terceiro capítulo esteja pronto o mais rápido possível e que este seja mais revelador!

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    1. Que bom que está gostando, Lipe! Estou me esforçando para, como eu disse, "manter o padrão de qualidade" que tanto agradou a todos. No próximo capítulo pretendo revelar quem é a vítima do Sr. Nicholls... garanto que vocês vão se impressionar!

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  3. Você me surpreende a cada capítulo! Fiquei impressionada e criosa com a história.

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    1. Que bom! Tomara que eu continue a surpreendê-la :)
      Abraço!

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  4. Meu Deus! Como assim, Dorota? O.o
    Prima... show você ter abordado a perspectiva da Dorota nesse capítulo. Engraçado como em poucas linhas você transformou a "moça frágil e saudosa" em uma... eu diria até... possível antagonista.

    PARABÉNS PRIMA!!!! Beijão!

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