Cidade do Rio de Janeiro –
Brasil, 17 de Maio de 1966.
O relógio digital ao lado da cama marcava três e quarenta e cinco. Mas
Rômulo ainda estava acordado, revirando-se na cama como se o colchão não fosse
suficientemente espaçoso para sua inquietação. Vinha sofrendo de insônia desde
que fora designado para investigar um caso de assassinatos em série. As mortes
começaram a acontecer há quase quatro anos e ainda não existia sequer o menor
indício de quem poderia ser o psicopata causador de tal atrocidade. Era como se
o assassino se ausentasse por um tempo, e então decidisse matar novamente, só
para voltar a ser lembrado.
O detetive Rômulo Leal estava no caso há dois anos e investigara quatro dos ceis homicídios que o psicopata havia cometido na cidade. E apesar da experiência
no ramo, não era capaz encontrar a menor ligação entre eles. Era sobre isso que
pensava, enquanto encarava o teto do quarto. O contrato dizia oito horas, mas
ele trabalhava vinte e quatro: era incapaz de desligar-se da culpa daquelas
mortes, além de sentir-se responsável por possíveis assassinatos futuros.
Desistiu de tentar dormir. Vestiu o roupão e caminhou descalço até a
cozinha. Preparou uma grande xícara de café – seu companheiro fiel, dede que
deixou de ser fumante – e sentou-se diante da televisão para checar a programação
da madrugada. A bebida estava amarga; pois fazia dois dias que o açúcar tinha
acabado, e ele não se lembrava de reabastecer a cozinha há muito tempo. Até
porque suas refeições consistiam em sanduíches pouco saudáveis ou pratos
exóticos em restaurantes baratos, desde que Rebecca pediu o divórcio. Ela
casou-se novamente há cerca de seis meses e Rômulo assistiu à cerimônia sem fazer
alarde – sentado ao lado de Sara, a filha de nove anos do ex-casal, que
insistiu para que o pai fosse convidado.
Ele tinha quarenta e três anos, estava separado há quatro, morava
sozinho num apartamento desorganizado e trabalhava como detetive de polícia.
Sua vida era baseada em trabalho e insônia, talvez porque não havia muitas outras coisas que importavam. Costumava dizer que era o homem do tipo mais comum existente: bem sucedido
no emprego, fracassado em todas as outras coisas.
Na manhã que não tardou a chegar, acordou assustado com o barulho insistente do telefone tocando. A televisão ainda
estava ligada e ele se sentia dolorido por ter dormido de mau jeito no sofá.
Uma luz fraca atravessava as cortinas, denunciando que já era dia.
– Alô? – disse enquanto esfregava os olhos e tentava se espreguiçar.
– Detetive Leal? – indagou uma voz masculina grave e um pouco
apressada.
– Sim, sou eu – respondeu, bocejando.
– Desculpe acordá-lo tão cedo, detetive.
– O que foi que aconteceu?
– Ele matou mais uma pessoa, senhor.
Rômulo anotou o endereço do local do crime e desligou o telefone.
Então caminhou até o banheiro com a sensação de ter falhado novamente. Eram sete mortes agora – e ele se sentia culpado por ser incapaz de impedi-las, como deveria ter feito.
Tomou um banho quente para relaxar os músculos tensos e não se incomodou em fazer a barba que começava a nascer: pretendia encontrar os legistas ainda na cena do crime. Não pode evitar, entretanto, o impulso de encarar-se por alguns instantes no espelho embaçado diante da pia. Olheiras visíveis chamavam a atenção
para os olhos castanhos. O rosto anguloso e a expressão forte mostravam-se
imponentes, na companhia dos primeiros fios grisalhos que começavam a aparecer
nos cabelos volumosos. Tinha um ótimo porte físico e ainda arrancava suspiros
das mulheres, apesar de nunca mais ter se interessado por ninguém depois do
divórcio.
Vestiu-se com a primeira coisa que encontrou no armário. Depois pegou
as chaves do carro e saiu, trancando a porta por fora. Desceu os quatro lances
de escada do prédio, pois concluiu que o elevador demoraria a voltar do décimo
sexto andar, além de que precisava se exercitar um pouco: um longo dia o
aguardava. Respondeu ao bom dia do porteiro, depois caminhou até a garagem,
onde estacionara seu Mustang preto e conversível – que orgulhosamente comprara
há um ano e dois meses com algum dinheiro sem uso, esquecido na conta bancária.
Do bolso do casaco, pegou o papel com o endereço e leu novamente.
Suspirou fundo antes de colocar a chave na ignição, depois manobrou o carro com
cuidado e saiu para a rua agitada das primeiras horas da manhã. Parou num
semáforo diante de uma escola, onde crianças apontavam para seu carro e
admiravam boquiabertas. Num dia menos tenso, Rômulo teria buzinado e talvez até
se exibido um pouco, mas aquela era uma manhã de luto. Depois de dirigir
por mais algum tempo, tendo ficado cerca de quinze minutos parado num
engarrafamento, finalmente chegou ao seu destino. Do fim da rua, já era
possível avistar as três viaturas da polícia e uma ambulância. Uma faixa com listras
amarelas e pretas isolava um beco entre dois prédios antigos.
Descendo do carro, Rômulo caminhou devagar rumo ao alvoroço pouco
adiante. Adiou os passos como se desejasse não chegar, mas quando abaixou-se
para passar pela faixa de isolamento,
prometeu a si mesmo que encontraria o assassino que causara tal
atrocidade. Desejou, porém, que essa não fosse mais uma de suas promessas
vazias.
– Detetive Leal! – dissera uma voz apressada – Finalmente o senhor
chegou! Por que demorou tanto?
Era Miguel Correa, o estagiário que, desde que pôs os olhos em Rômulo
pela primeira vez, jamais o perdeu de vista. Era um bom rapaz, bastante
prestativo e curioso, que provavelmente sonhava ser um detetive tão bom quanto
o famoso Leal, a quem dedicava tanta estima. Miguel era loiro e tinha olhos
claros; apesar de algumas sardas lhe pintarem o rosto, era um jovem atraente.
Não muito forte, mas também não muito magro, um tipo bem apessoado e
sorridente.
– Você tem um cigarro, Sr. Você-Está-Atrasado? – perguntou Rômulo, sem
muito entusiasmo.
– Senhor? – o rapaz levantou as sobrancelhas – O senhor voltou a
fumar?
– Estou prestes a fazer isso. É claro, se você tiver um cigarro.
O garoto deu de ombros, depois revirou os bolsos da calça e tirou um
maço de Pall Mall. Ofereceu-lhe ao detetive juntamente com um isqueiro, sem
dizer mais nada. Rômulo devolveu o objeto depois de tê-lo usado, e caminhou feito uma chaminé ao encontro do chefe de polícia, saboreando a sensação esquecida. Miguel seguiu em
seu encalço com os olhos brilhando em uma admiração contida, pisando praticamente
nos mesmos lugares em que Rômulo acabara de tirar os pés.
– Manhã movimentada – disse, propositalmente soltando uma baforada de
fumaça na direção do senhor gorducho, que parecia precariamente enfiado no
uniforme azul escuro, como se os botões pudessem estourar a qualquer momento e voar em todas as
direções.
– Negativamente movimentada, devo dizer – acrescentou o chefe de
polícia, procurando parecer tão imponente quanto o detetive mais famoso da cidade;
e falhando miseravelmente depois de precisar tossir devido à fumaça.
Rômulo prendeu o cigarro nos lábios e remexeu o bolso interno do paletó,
onde pegou um bloco de notas e uma caneta.
– Conte-me o que sabe – disse simplesmente.
Uma nuvem sombria pareceu pairar sobre o rosto obeso do homem quando
ele falou.
– Temos uma pista, senhor – aqui ele fez uma pausa dramática – E acredite quando digo: aquilo foi um recado para você.
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