A ideia do Sr. Nicholls era
simples: não poderia ser mais fácil de entender. E eu iria fazer exatamente o que ele me
ordenara.
Saí correndo do restaurante,
sem me importar com os olhares que arranquei das pessoas que ali se reuniam. O
vento gelado da noite açoitava o meu rosto como uma centena de facas afiadas.
Tropecei algumas vezes pela calçada e inclusive sujei a roupa nova. Mas não
parei de correr. Nem mesmo quando esbarrei em um homem que derrubou um livro no
chão e lançou-me uma ameaça qualquer, que não tive tempo de ouvir. Parei
ofegante na esquina da Theodor Millor com a Principal. Entrei no casarão aos
tropeços, sem perceber que tinha rasgado parte da manga do terno.
– Louis? – gritei – Louis,
cadê você? – corri escada acima e tornei a gritar – Louis!
Nenhuma resposta.
Voltei à sala de estar, onde
três garotos estavam sentados no sofá. Encaravam-me com olhos curiosos, depois
cochicharam entre si. Então um deles se levantou de súbito dizendo:
– Sim, é ele – gritou,
apontando-me – É só o Craig! Porque está vestido assim, Craig? Quase nos
enganou!
Era um meninozinho com cerca
de nove anos. O rosto estava sujo e as roupas rasgadas. O cabelo escuro
crescia-lhe até os ombros, semi-escondidos por uma boina xadrez. Eu não me
lembrava seu nome, mas sabia de sua fama: era trapaceiro e gostava de tirar
vantagens das pessoas.
– Onde está Louis Collins?
Você por acaso o viu? – perguntei-lhe.
Ele sorriu seu sorriso
amarelado, vendo uma oportunidade.
– Talvez – deu de ombros – Depende do que eu ganho em troca.
– Ora, vamos lá! É importante!
– Importante? – os olhos
brilhavam – Isso torna o serviço mais caro.
– Você fala como um matador de
aluguel, garoto – eu disse com desdém.
– E você continua sendo um
menino de rua idiota, ainda que mude de roupa – retrucou.
Fiz que iria acertar-lhe um
tapa, levantando uma das mãos com rapidez e parando-a no meio do caminho. Ele
arregalou os olhos e recuou de volta a seus companheiros, onde, sentindo-se
seguro, voltou a lançar-me insultos.
– O que diabos está
acontecendo aqui?
Virei-me para a porta do
corredor, de onde vinha a indagação.
– Óh, nunca estive tão feliz
por vê-lo – eu disse, encarando meu melhor amigo.
– Aconteceu alguma coisa? Por
que está vestido desse jeito? – ele se aproximou devagar, com os braços
cruzados e os passos quase ensaiados, analisando-me criteriosamente.
– Preciso se sua ajuda, Louis.
– Isso eu já supunha. A
pergunta é: o que quer que eu faça e quando?
As crianças amontoadas no sofá – inclusive o garotinho com quem eu tinha falado – observavam a conversa
atentamente, quase dependurando-se umas sobre as outras para poder ouvir
melhor. Notei-as com minha visão periférica, ávidas por entender o que estava
se passando. Discretamente, fiz sinal para que Collins me acompanhasse até a
rua.
– Vejo que esse emprego tem
lhe feito bem, Christopher – disse-me, quando deixamos a casa.
– Louis, o Sr. Nicholls tem um
plano.
– É claro que tem, seria um
tolo se não tivesse!
Fiquei em silêncio por alguns
instantes.
– Preciso de sua ajuda para
executá-lo.
– E o que espera que eu faça?
Quando contei-lhe o plano,
Collins ficou pensativo, mas, é claro, aceitou participar. Na noite seguinte,
no horário combinado, estávamos os dois escondidos atrás do tronco de uma
grande árvore na esquina da rua enquanto uma mulher muito bela e bem vestida caminhava casualmente pela
calçada. Desacompanhada.
Fiz sinal para Collins e nós
dois corremos ao encontro dela. A algazarra foi geral. Louis gritava que era um
assalto, a mulher pedia socorro com um sotaque francês muito carregado e eu a
ameaçava com uma faca. Não demorou muito para que dois homens uniformizados
saíssem de dentro da mansão cor de marfim, correndo para salvar a moça em
perigo. Ao avistá-los, Louis e eu voltamos a correr rua acima, parando para
descansar somente depois de sair do campo de visão dos seguranças.
Observamos de longe quando
eles levaram a pobre coitada – que estava aos prantos – para dentro da casa.
Ela era de fato uma atriz incontestavelmente incrível. Cerca de vinte ou trinta
minutos depois, ela voltou para a rua. Só que sozinha e muito bem recomposta,
sem lágrimas, sem gritos aflitos. Do outro extremo da rua, o Sr. Nicholls veio
caminhando apressado e nós corremos para alcançá-lo.
– Tudo certo lá dentro,
Caterine? – perguntou ele.
Ela o encarou com uma
expressão sedutora – inclusive para mim, que mal passava de um garoto.
– Eu nunca falho, monsieur.
Como
o combinado, Louis e eu ficamos de vigia na rua. Sentamo-nos no meio fio
enquanto o Sr. Nicholls e a mulher voltaram para dentro da casa. Eu não queria
que o plano B precisasse ser executado, porque esse consistia em distair alguma
pessoa que pudesse pôr tudo em risco, enquanto Louis entrava na mansão para
avisar aos demais da necessidade de fugir pelos fundos. Fechei os olhos e desejei
que tudo corresse bem, exatamente como o planejado.
O
silêncio inquebrável que pairava sobre os casarões daquela rua parecia um
presságio, como que uma preparação para a marcha fúnebre que ocorreria logo
depois que encontrassem o corpo. Eu estava tenso, pois não fazia ideia de como agir
caso alguém aparecesse. Mas precisava manter o sangue frio, mesmo tendo
consciência de que um homicídio estava prestes a acontecer. Um homicídio no qual eu estava envolvido até o último fio de cabelo.
Era
por volta de nove e meia da noite. Uma mulher vinha solitária pela rua,
carregando uma mala florida. Aquela sim, tinha todos os atributos de uma verdadeira dama em perigo. Louis e eu nos entreolhamos, engolindo
em seco. No fundo, esperávamos que a rua permanecesse deserta enquanto
estávamos vigiando. Mesmo sendo alguém que aparentemente não oferecia sequer a menor ameaça, nós nos assustamos. Ela se aproximou imponentemente,
sem se importar com a possibilidade de que talvez pudéssemos ser perigosos. Olhou-nos
de cima embaixo; colocou a mala no chão.
Antes que esboçássemos qualquer reação, ela perguntou:
– Essa é a casa de Phillip
Mason?
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Link do Capítulo XV (próximo) - EM BREVE!