segunda-feira, 11 de março de 2013

O Jardineiro: "Parte 1 - Psicose"


Cidade do Rio de Janeiro – Brasil, 17 de Maio de 1966.

Andando apressadamente pelas ruas enegrecidas da madrugada nos subúrbios do Rio de Janeiro, a moça espiava com frequência por cima do ombro, pois a estranha sensação de estar sendo observada a afligia.
Com o salto alto marcado a velocidade acelerada e constante de seus passos, o pensamento que lhe ocorria incessantemente era de que não deveria ter ficado até tarde na casa da amiga. Muito menos tido a imprudente ideia de voltar sozinha pelas cinco quadras que a separavam do próprio apartamento. Estudante universitária e feminista declarada, fez questão de parecer independente e ir embora, ainda que a amiga tivesse gentilmente oferecido abrigo por uma noite. Quando finalmente terminaram o trabalho a ser entregue no dia seguinte, porém, a jovem juntou os materiais e se foi, deixando votos de boa noite.
Mas agora que os prédios pareciam sombrios e um silêncio retumbante tomava conta das ruas desertas, ela assumiu intimamente que não se importaria em estar na companhia de um homem em cujos braços pudesse se abrigar. Enquanto desviava das poças d’água causadas pela chuva que se fora há cerca de quarenta minutos, no entanto, seu objetivo maior era chegar logo até o edifício de quatro andares onde morava.
Dobrava a esquina e seguia segurando os materiais junto ao peito, quando um estranho arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Olhou para trás e sentiu uma enorme vontade de colocar-se a correr imediatamente, ao mesmo tempo em que algum tipo de força invisível a paralisou no lugar: estagnada de surpresa.
Um homem parado nas sombras, a pouco mais de dez metros de distância.
Ela quis acreditar que era apenas um qualquer, talvez até um pouco bêbado, tropeçando pelas ruas da madrugada. Mas algo estranho na postura serena que ele apresentava a deixou em um estado que mesclava pânico e curiosidade. Com as mãos nos bolsos e os sapatos lustrosos – um pé no chão, outro encostado no muro –, o homem tinha o rosto obscuro sob a aba de um chapéu.
Ela foi tomada por um medo sem explicação. Todavia, fazendo uso de sua sensatez, concluiu que o sentimento era um equívoco, uma vez que o homem nem sequer a encarava. Com o rosto baixo, observando qualquer ponto no chão próximo ao meio fio. Ele parecia indiferente à presença da moça. E, além do mais, faltavam apenas três quadras para chegar em casa. Pelo sim, pelo não, apressou o passo.
Por mais que ele possuísse um encanto inexplicável, seduzindo-a de um jeito bizarro, a moça tomou o cuidado de não olhar mais para o homem. E, chegando ao outro lado da rua, já era capaz de vislumbrar o contorno da pequena praça que ficava em frente ao edifício onde morava.
Que boba, eu sou!, pensava consigo mesma, Qual é o problema de voltar sozinha? Nem sequer um problemazinho para me preocupar!
Esboçando um sorriso de contentamento, olhou para trás já quase sem se lembrar do homem que há pouco notara. Mas ele estava lá. O choque foi grande ao perceber que, ao invés de ter ficado para trás, estava mais perto que antes. A moça levou a mão à boca, sentindo o coração acelerar-se de uma maneira inquietante, adquirindo uma pulsação descompassada. Pôs-se a caminhar com mais pressa, observando-o pela visão periférica. O estômago revirou-se em um salto, ao perceber que o desconhecido a estava seguindo.
Caminhou mais depressa; até perceber que corria, perseguida por um homem desconhecido. Tentou pegar as chaves enquanto disparava pela calçada, mas ele estava a pouca distância. Concluiu então, em um momento de total domínio da insanidade e do desespero, que deveria continuar correndo e procurar despistá-lo. Não se cansaria tão facilmente, sabia, pois era membro da equipe de atletismo na faculdade e tinha um ótimo porte físico. Era possível que pudesse voltar para o apartamento sem ser notada pelo homem.
Correu.
Largou os materiais no chão para evitar o peso e correu tanto quanto poderia: talvez um pouco mais. Tinha os olhos assustados e cheios de lágrimas ao perceber que, tão próximo do abismo da exaustão, ainda estava sendo incessantemente perseguida. Lutava contra os próprios limites, libertando um instinto de sobrevivência quase selvagem, que a fazia deslizar pelas ruas escuras.
A essa hora já nem sabia mais o quanto correra ou a que distância estaria seu apartamento; completamente perdida no tempo e no espaço. Os pulmões estavam fracos demais para conseguir juntar fôlego suficiente para gritar. E, além do mais, isso só denunciaria sua presença: ele rapidamente a encontraria e tudo estaria acabado. Ela esgueirou-se por uma viela estreita, ao mesmo tempo em que a chuva desabou de repente, embaraçando-lhe os cabelos ruivos que caíam sobre o rosto. Em uma tentativa desesperada de despistar o homem, aproveitando que o som de seus passos tinha sido encobertos pelo barulho da chuva, escondeu-se atrás de três ou quatro grandes latas de lixo que encontrou em um beco, agarrando-se a um último e fino fio de esperança.
Não conseguia vê-lo, e barulho da chuva contra a calçada impedia também que pudesse ouvi-lo.  Mas, de alguma maneira, era como se sentisse os passos do homem ali por perto. Perto demais. Mas então voltou a acalmar o coração, gradualmente trazendo a respiração para um ritmo mais lento. Ele se fora. Por alguns segundos, ela chorou – mas chorou de alívio, pois estava a salvo. Unindo todas as forças que lhe restaram, ela pôs-se de pé.
Caminhando rumo à única saída, entretanto, um grito que deveria ecoar por toda a cidade morreu na garganta, quando ela ergueu os olhos e notou seu assassino parado a poucos metros de distância.

PRÓXIMA PARTE: Parte 2 - Ofício
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O suspense policial intitulado "O Jardineiro" chegou, como ficou prometido após o capítulo final de "O Crime de Vicent Nicholls". Espero que esta nova história continuada agrade a vocês tanto quanto a ultima. Próximos capítulos em breve! Aguardem novas publicações!

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Vinte e dois de fevereiro



Fazia exatamente sete anos desde a última vez.
Sete longos anos de uma promessa dessas, aparentemente fadada ao esquecimento, mas que o tempo não foi capaz de varrer da lembrança. “Encontre-me outra vez”, ela dissera. “Quando?” – ele perguntou, incapaz de deixá-la ir. “Nesse mesmo dia, sempre neste dia, nos anos que vierem. Espere por mim no farol.”
Ele chegou antes que o sol nascesse, por não querer cometer o mesmo erro das seis últimas vezes. Estacionou o carro e respirou fundo, quando o pensamento lhe ocorreu. O pensamento que, nos últimos sete anos se provou verdadeiro: Ela jamais veio. E jamais virá. Por que insisto em fazer isso? Centenas de vezes tinha jurado a si mesmo que não faria isso novamente, que não se daria ao trabalho de levar a sério palavras tão vazias; mas era óbvio que, no fim das contas, sempre se agarrava ao último fio de esperança. E se tivesse chegado tarde demais ou ido embora muito cedo, em todos os últimos dias vinte e dois de fevereiro? Talvez ela viesse todos os anos, mas a paciência para esperá-la tivesse sido insuficiente. Será que se mede o amor pelo tempo que se espera? Se sim, sentia-se envergonhado por ter um amor tão pequenino.
Ainda que desativado há anos – talvez décadas –, o farol crescia imponente no topo de uma colina de pedregulhos em frente ao mar. Lá embaixo, a uma altura vertiginosa, as ondas batiam nas pedras e curvavam-se de volta, agitadas com o crepúsculo que lançava uma luz pálida sob as primeiras horas da manhã. Caminhando monte acima com certa dificuldade devido à pouca claridade, o pobre homem solitário observava o contorno do farol esquecido na praia, com suas listras horizontais das cores branco sujo e carmim desbotado. E se perguntava, como sempre fizera, o motivo de ela ter escolhido aquele lugar.
Sentou-se numa pedra olhando para o mar e para a lua, que ainda teimava em brilhar e chamar a atenção, mesmo depois da noite já ter sido deixada para trás e suas horas de glória já tivessem ido com ela. Sentiu a brisa salgada chegar e ir-se embora. Viu os pássaros se alimentarem até que eles e seus filhotes estivessem satisfeitos. Hipnotizou-se por um bom tempo com as ondas. Atirou algumas pedras no mar para passar as horas. Procurou algumas formas em nuvens, apesar de nunca ter sido realmente bom nisso. Percorreu todos os arredores e, por fim, voltou a sentar-se na mesma pedra de antes. A manhã há muito tinha se transformado em tarde; e esta, adquirindo tons avermelhados, preguiçosamente preparava-se para virar noite.
O sol se punha num espetáculo no horizonte, que parecia próximo o suficiente para se nadar até ele. Tocando um mar magnífico e intenso, a enorme bola de fogo parecia ser engolida pela imensidão do oceano. Olhando para cima, num último adeus ao farol, que competia em beleza e esplendor com o por do sol, disse adeus também ao sonho infundado de um dia reencontrá-la. E, descendo a encosta íngreme, por um ou dois segundos, chegou a ter certeza de que sua insistência tinha sido em vão. Instantes depois, entretanto, notando uma nuvem de poeira aproximando-se em alta velocidade, percebeu que um carro acelerava em direção ao farol. Estarrecido pela visão, com o coração a ponto de saltar para fora do peito, continuou parado e imóvel enquanto o veículo de vidros escuros parou a poucos metros de distância.
A porta se abriu. E, sim, era ela.
Correram um para o outro com a saudade impulsionando-lhes ao reencontro. Amaram-se em um abraço. Completos novamente.
– Por que você demorou tanto? – mesmo que as lágrimas pudessem ter sido evitadas antes de saltarem dos olhos, ele não se deu ao trabalho de contê-las, por não ter vergonha de chorar sua felicidade.
A resposta foi curta e risonha: – Tinha esperanças de não encontrá-lo aqui.
– O que quer dizer? – a voz soava preocupada e um pouco soluçante.
Afrouxaram o abraço e olharam-se longamente, antes que ela respondesse.
– Pouparia-me o tempo de pedir desculpas por demorar tantos anos para vir também.



(Baseado em uma história quase real.)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Das incoerências


Olhei-o com desdém. Ostentando um meio sorriso de desprezo, o rosto dele mostrava-se indiferente aos pensamentos que eu acabara de compartilhar. Arrependi-me amargamente por ter permitido que ele soubesse. Desejei poder retirar o que disse, mas quando se fala por impulso, muito se diz e pouco se aproveita.
– Você é tão idiota! – dissemos ao mesmo tempo, depois de um longo período de silêncio e pensamentos atordoados.
O rosto indiferente transformou-se em um esgar de fúria, e a respiração ficou entrecortada. E então eu notei que também respirava com dificuldade. Era como se nós dois tivéssemos aceitado o insulto, não podendo lutar contra uma verdade tão palpável. Mas, ainda assim, não nos detemos. Falamos ao mesmo tempo e em altos tons, numa discussão duradoura. E, ao fim dela, encaramos um ao outro com ar de superioridade. Quem vencera, não sei dizer: provavelmente ninguém. Porém, era sempre eu quem cedia primeiro. Encarando aquele rosto intransigente, desisti de me fazer entender. E nesse instante, sem conseguir me entender comigo mesmo, guardei o espelho e voltei para a cama: obrigado a dormir de mal comigo mesmo. Maldito seja aquele psicólogo da TV, que me fez brigar com a única pessoa com quem eu me entendia!


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

É "E agora?" demais para José de menos. Quando reticências viram ponto final, só o desinteresse sabe ser mais rápido que o interesse.

Com pressa: rumo ao fim


Culpas tão minhas: das muralhas que levantei, cercando o tesouro ao qual deveras dediquei estima – em vão. Consumida pela vaidade e pelas subjetividades que tentei esconder, sinto clamar em mim uma centena de vozes, com pedidos cada vez mais discrepantes. Na real certeza do erro, consomem-se minhas forças enquanto caminho por muitos excessos e uns quantos “nada” – vazia de sentimento.
Agarro o tempo e o prendo entre as mãos, numa tentativa de controlá-lo. Seguro-o em meu domínio como se pudesse ser tua senhora. E, sem perceber, permito-me essa ilusão do controle; enquanto ele silenciosamente se esvai por entre meus dedos, num fim tão rápido que me comove. Guardo-o no bolso, mas seu peso me impede de caminhar, ao mesmo tempo em que desisto de detê-lo. Não se pode aprisionar o que tem sobrenome Liberdade.
Escalei tantas colinas para chegar aqui, que o aqui perdeu o sentido. Caio em tropeços e resvalo em minha fraqueza: onde errôneas certezas contaminam os sonhos que outrora sonhei. Limito-me a ajustar alguns propósitos aos novos dias que chegam e se vão. Assim, entendo a dor de enterrar os vivos; pois as aspirações que tive ainda não puderam morrer. Por entre glórias alheias, saboreio um gosto amargo de moralidades mesquinhas. E na possibilidade de ser o que não fui, acabei me tornando o que não nunca quis ser. Enquanto me fantasio aos olhos do mundo, tenho – intimamente – uma alma nua e um sorriso profundamente contaminado.


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Dores às quais me dou


Então eu sou o infinito; mas um infinito ofendido. Um infinito que tem uma dor latejante lá no fundo, somente esperando meu chamado para poder vir doer abertamente. Meus esforços ineficazes de aprisioná-la gritam em uma agonia cansada. E lançando um olhar sóbrio sob minha embriaguez de todas essas inseguranças doídas, insisto em narrar o que narro porque calar não me basta.
Descobri que a dor dói sem piedade, mas não ouso admitir que me vejo em uma constante procura do lado certo das minhas ambiguidades. Talvez porque sinto como se todas as coisas estivessem sendo vistas de um espelho: constantemente invertidas. E, com facilidade, o tempo se dispersa antes que eu possa tocar suas amarras. Sem poder desatar os nós, me afundo em analgésicos que não farão efeito, porque não é só o corpo que dói. Me dói o certo e o avesso. Me doem os olhos e as mãos. Me dói o sim e o não. Me dói a consciência. As costas. As pernas. Os joelhos. As canções. As ambições. Doem-me as dores.
Tateando no escuro com tudo o que me sobra; percebo que o que falta, falta em demasia. Mas a dor de fracassar dói tanto, que prefiro aguentar todas as outras pra não ter de provar dela.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Morte sobre a Vida


Um dia desses a Morte saiu à rua, silenciada por seus desgostos e amargurada por uma sutil agonia que a acompanhava desde antes dos tempos até depois da eternidade. Sua silhueta era cabisbaixa, e quando vista contra a luz, parecia pequenina e melancólica. Diluiu-se no caminho para recolher algumas almas com hora marcada. Um acidente de carro, na madrugada. Um doente terminal, pela manhã. Uma mulher assassinada, antes do início da tarde. Um senhor muito velho, depois do almoço. E outros: muitos outros.
Caminhava devagar, para buscar um jovem rapaz que não tinha estado nos planos, mais um desses que se vira desgostoso da Vida e já sem esperanças de qualquer possível melhora. Entre a multidão que se esbarrava naquele planeta miúdo demais pra tantas dessas criaturas temerosas de sua presença, a Morte pensava em quando seria seu inevitável encontro com cada uma delas.
Bateu na porta e o rapaz atendeu, ainda sob o choque de estar olhando para si mesmo sem o auxílio de um espelho. E sabendo que aquela visão grotesca era o irremediável, o jovem observava – com um pouco de pesar, inclusive – o próprio corpo estendido no carpete da sala, com uma marca de tiro atravessando-lhe o crânio; um bilhete numa mão, um revólver na outra.
– Boa noite – disse à visitante abertamente esperada, que precisou correr para atender ao chamado a tempo.
– Sim – respondeu ela, olhando-o nos olhos – Uma boa noite, você escolheu. Não são muitos os que desejam me conhecer.
A Morte entrou no apartamento, tirando uma túnica cinzenta com detalhes em azul claro e dourado, enquanto o rapaz observava.
– Perdoe a falta do preto puído e o manto rasgado que vocês humanos esperam – disse ela, quase podendo ler os pensamentos dele – Também tenho os meus caprichos, sabe. E se eu fosse ficar de luto sempre que alguém morre, injustamente, naturalmente, por vontade própria, por vontade alheia ou por causas naturais, já não teria espaço no guarda-roupa para tanto negrume. Vez ou outra, quando acho que devo, até apareço um pouco mais semelhante ao esperado. Mas não tenho uma foice, se quer saber. Inclusive, detesto aquelas coisas: bem como todas as outras coisas que vocês humanos insistem em associar a mim.
– Eu não esperava nada – o rapaz encarou o chão – Quero dizer, eu esperava o nada.
– Sim, sim. Vocês todos têm essa mesma conversa.
– Nós? Os humanos?
– Os suicidas.
– Leões selvagens deixaram suas tocas para habitarem dentro de mim.
– Os leões selvagens mais próximos estão do outro lado um vasto oceano. Não precisa usar tantas metáforas. Sei que suas palavras tão bem ensaiadas soavam belas aos ouvidos de quem o admirava, mas eram vazias aos seus próprios. Por isso você me chamou. Sei que é meu trabalho vir buscá-lo; e é claro que você tem o direito de me obrigar a algumas horas extras. Mas será que o mundo é assim tão insuficiente para que você possa residir em paz?
– Sempre fiz o que acredito ser o certo, sou uma alma livre – respondeu, com convicção.
– Não é mais – disse a morte, apontando para o corpo inerte e sem Vida.
– Se o que pretende com essa conversa é me levar a um estado de arrependimento e amargura, saiba que jamais sairemos daqui. Ninguém, nem mesmo você, pode me convencer de que o que eu fiz não foi o melhor para mim.
– E ninguém, nem mesmo você, pode entender que eu, a Morte, não chamo ninguém: sou chamada. O seu chamado precoce me entristece, mas meus olhos já viram coisas piores pelo mundo dos homens. Sei que tenho o mais terrível trabalho que poderia querer, vagando entre os de sua espécie para buscar os que perecem, dia após dia. Você, meu jovem rapaz, teve propósitos que desconheço, teve sonhos que jamais saberei, teve ambições que jamais se realizarão: pois é trabalho da Vida se encarregar do que você merecia, não meu. Só venho buscá-lo, como que para fazer uma faxina na bagunça que você deixou para trás. Desse mundo você não levará nada além de memórias. E se era reconhecimento ou admiração o que buscava, saiba que nem esses vão na bagagem. Que fiquem claras duas coisas. Primeira: você pode aprender a viver, e de fato, a Vida ensina. Segunda: pode conhecer a Morte. Eu também ensino, mas minha intolerância calejada pelos séculos de serviço, já há muito não permite novas oportunidades, segundas chances e nem recomeço.

"Saiba morrer o que viver não soube." (Bocage)

domingo, 27 de janeiro de 2013

Turbulência


"As coisas têm um brilho que com o tempo se vai."
(Kurt Cobain)

Eu sei o que quero. Só não sei como explicar. Meu eu lírico tirou férias. As palavras calaram-se e foram embora, sem nem olhar para trás. As letras emudeceram-se. Enquanto isso, eu, na minha ira contida, procuro ignorar as contradições. E em algumas horas desesperadas chego até a ter audácia suficiente para ignorar também a realidade, assim meio desconfiada. Não lembrei de esquecer de me preocupar tanto com as incertezas do futuro, cega diante das possibilidades de um desterro não tão feliz quanto o planejado. Cada passo que dou, me retraio por dentro e me contorço em um enorme medo de que o jeito que tenho dado para resolver as coisas não seja o jeito certo. Quero me doar às asas da casualidade, mas meu instinto racional  que irônico, dizendo assim  não permite tanta esperança. Os demônios acordam quando os anjos vão dormir. Se fosse dessas que acreditam em sorte, ousaria dizer que não a tenho. Talvez não tenha justamente por isso, como um castigo por não acreditar nela. Mas a sorte que me perdoe, ouso dizer, pois me tornei perita na arte de desacreditar nas coisas. Sou uma pequena manipuladora de palavras, como alguém que sente prazer em procurar a coisa certa a dizer: e na busca, acaba se deparando com o silêncio das palavras que não disse. Quem vê cara não vê intenção; mas quem ouviu o silêncio escutou tudo o que precisava ser dito.

O Grande Kurt Cobain (1967-1994).

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Edifício Beija Flôr, com acento, por favor



Então, no auge da minha vontade de independência, me mudei para um prédio desses de aluguel barato. Chamava-se Edifício Beija Flôr  com acento, por favor , e era onde ficava meu minúsculo apartamento no sexto andar. Eu chegava do trabalho cansada, com uma vontade contida de matar o meu chefe à machadadas; e um sentimento esquisito de iminente fracasso.
Eu descia do ônibus xingando o motorista dos nomes que eu sabia e daqueles que eu tinha inventado, porque ele fazia questão de passar direto pelo meu ponto, obrigando-me a caminhar quase quatro quadras de volta, para poder chegar em casa. Todos os dias, o velho porco só pisava no freio quando as quatro quadras já tinham-se ido; e ainda sorria marotamente antes fechar a porta e voltar a acelerar, lançando-me um olhar divertido pelo retrovisor. Eu mostrava-lhe o dedo e saía pisando fundo.
Chegava ao prédio ainda resmungando, onde um porteiro que falava um idioma que eu nunca cheguei a saber qual era, tentava conversar comigo em um português de palavras soltas que o pobre pensava fazer sentido. Nunca entendi o que o síndico tinha na cabeça por contratá-lo. Ele gesticulava e falava, depois desistia de tentar ser entendido, rindo do próprio embaraço.
 Então até mais, Seu Bruska, preciso ir agora.
 Varswiszth skulwq hulçhawky volkt.
 Aham, Seu Bruska, vejo o senhor depois.
Ele acenava murmurando alguma coisa parecida com um “adeus” e eu subia, sem saber direito se aquelas coisas indecifráveis que ele dizia eram realmente tão gentis quanto indicava o seu sorrisinho. Havia, ainda, a possibilidade de o Seu Bruska estar tentando me contar que meu apartamento tinha sido roubado ou estava em chamas. Sempre que pensava nas possibilidades negativas, torcia para estar no elevador alguma vizinha dessas bem fofoqueiras, que sabem da vida do prédio todo e contam a quem estiver por perto (principalmente a quem não quer saber). Geralmente Dona Gertrudes era quem eu encontrava, quando ela estava saindo para o seu jogo de bingo noturno. Nenhuma notícia sobre apartamento roubado, mas ela sempre se lembrava de tagarelar sobre sei-lá-quem do quarto andar que chegou tarde e tem uma amante, sobre dona-Fulana que está ficando biruta e seu filho mais velho quer levá-la pra um asilo e sobre a vizinha da frente que está com aluguel atrasado há três meses e vai ser despejada na semana que vem. Quando a porta do elevador se abria e eu finalmente me livrava de sua falação constante, ela provavelmente contaria ao próximo que visse sobre o quanto a moça do 703 é antipática. Que culpa eu tinha se ela era capaz de subir até meu andar somente pelo prazer de ter mais tempo para espalhar seu veneno aos quatro ventos?
Era uma época esquisita, aquela em que eu odiava boa parte de todas aquelas coisas. Ou, ao menos, pensava odiar. Eu não suportava meu chefe. Detestava o motorista do ônibus. Odiava profundamente o lugar onde morava, com um porteiro que falava turco ou sei lá o que, e vizinhas que vigiavam-me o tempo todo. Mas quando olho para o passado e vejo todas aquelas coisas que faziam da minha rotina tão movimentada, do Edifício Beija Flôr tão peculiar e da minha vida tão simples, é que percebo que às vezes superestimamos nossas ambições e desejos de mudar o futuro, em detrimento da percepção da realidade: o exato momento do agora, que é o mais importante de ser vivido, deveria ser encarado com menos aspereza.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Pra você guardei o amor


Guardei um amor. Tão bem guardado, que acabei perdendo. Como um porta-retrato velho, que já não serve a seu propósito, mas passa as horas esquecido dentro de uma gaveta, para empoeirar-se com lembranças que ficaram velhas demais para serem lembradas. Então as coisas saíram do controle quando eu olhei para você por apenas um segundo que foi tempo suficiente pra me apaixonar quinze vezes ou mais. Passei o segundo seguinte odiando a sua tão perfeita imperfeição. E no restante do dia, notei-me como quem acha um porta retrato poeirento na gaveta e quer devolvê-lo: mas já não consegue, porque acaba de decidir que a fotografia merecia ser vista. Quisera eu, sonhadora e melancólica numa tardezinha cinzenta de chuva e lúgubre de monotonia, presentear-lhe com meu amor recém-encontrado.
Perdi a hora e a fome. Como eu quis te chamar pra me amar enquanto o tempo decolava para longe e a comida tinha um gosto, mas não era gosto de você! Depois me vi abatida, entre um estado de serena descoberta e tristonha realidade: não sei teu gosto, só sei teu rosto  e isso tem sido o suficiente para povoar meus sonhos. Entorpecida por um ou dois sorrisos teus, gasto as horas entre abdicações e devaneios, quimeras altivas e desejos abastados de outro olhar seu; um desses que poderei fazer de conta ser meu, só pra meu encanto.
Guardei um amor; e o perdi. E você o encontrou, ainda que sem procurar, em meio a um emaranhado de emoções. Antes que os nós se desatem, porém, gostaria que nós nos atássemos um ao outro pra não soltar nunca mais. 

(Como o texto foi inspirado na música "Pra você guardei o amor", achei justo que este fosse batizado com o mesmo nome! E viva o poeta Nando Reis!)