domingo, 12 de agosto de 2012

Senhora


 De repente olhei para o mundo e tudo me pareceu tão belo que cheguei a sorrir, sem nem saber o motivo. Acho que pela primeira vez eu vi a vida fluindo; seguindo seu caminho  numa mansidão profunda, numa calmaria imutável. Acreditei, como nunca fizera antes, que as coisas de fato acontecem exatamente como devem acontecer. E me peguei observando um céu sem nuvens, pontilhado por pássaros distantes – desses que passam a vida cantando seus mantras e voando com asas de liberdade.
A felicidade que me tomou era do tipo sem motivo, que não se sabe de onde vem. E, percebendo isso, comecei a crer que estava sonhando. Mas não, não tenho sonhos calmos há muito tempo. Quando a infância se vai, vão-se os contos de fada.
Minha paz, porém, era tão grande que o tempo parecia parado – porque assim eu desejava. Senhora do tempo, sim. E de mim mesma. Senhora do mundo, eu. E do céu também.
O que me poderia perturbar? Quem se atreveria a atrapalhar-me? Eu voava pelo azul, rumo ao poente. E ninguém pode deter-me. Porque eu voo com as asas do infinito que me abraça; e pousarei nas mãos do meu destino. Somente eu é que vou decidir onde quero ir.
Eu sou senhora do que quiser.
E quero ser senhora da minha vida, nada mais.

Pôr do sol visto da varanda da minha casa. Foto de 09/04/12.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo VI


O garoto pareceu tão empolgado ao deixar o quarto, que cheguei a supor que ele poderia voltar dentro de meia hora trazendo boas notícias. Sorri com o pensamento otimista, pelo fato de ser tão improvável. Tomei um banho quente enquanto pensava em tudo o que acabara de dizer a Christopher. Depois, corajosamente, refiz os curativos do braço.
Ainda sem me vestir, enrolado na toalha, abri a mala e procurei por mais dinheiro debaixo das roupas. Tinha uma quantia suficiente para a diária de aproximadamente duas semanas, talvez um pouco mais. O hotel poderia até ser o pior de toda a Londres, mas só por estar aí localizado, já se sentia no direito de cobrar caro pela hospedagem. Apanhei o necessário e recoloquei o restante de volta à mala.
Vesti as roupas, peguei a arma que eu tinha confiscado do garoto e coloquei-a no cinto. Arranjei o paletó por cima dela, tomando o cuidado de olhar-me no espelho do banheiro para ter certeza de que não estava à vista. Peguei o chapéu e saí do quarto.
Tranquei a porta, guardei a chave no bolso da calça e caminhei calmamente pelo corredor. Mesmo sendo dia, a claridade era um pouco ofuscada. Ainda assim, o papel de parede encardido tinha uma cor feia. Além do fato de que descascava em algumas partes onde parecia ter sido roído por ratos. Os vasos de flores que eventualmente apareciam na decoração apenas tinham folhas secas e ervas daninhas. E as poltronas azuladas desmontariam só com o pensamento de alguém que ousasse sentar-se nelas. Desci a escadaria que rangia, vendo aranhas fugirem para se esconder em suas teias quando eu passava perto delas.
Quando cheguei à recepção, uma mulher caminhava até o balcão. E eu não podia negar que ela era absurdamente linda. Excluindo a Christopher e a mim mesmo, seria provavelmente a única hóspede do Bela Vista. Ao observá-la rapidamente, a primeira coisa que me ocorreu era que não deveria passar de uma prostituta, a julgar pelo modo com que se portava. Mas depois de alguns segundos olhando bem, percebi que aquela dama tinha muita classe. Não fazia sentido, porém, que precisasse se hospedar em um hotel tão decadente. Seu andar imponente fez um calafrio percorrer-me o corpo, como se mesmo sem dizer nada, ela pudesse me intimidar.
A maquiagem dos olhos era muito escura e o batom cor de sangue. O vestido – sabiamente planejado para exaltar as belas curvas que ela tinha – também era vermelho, rente ao corpo até a cintura, onde ficava rodado e assumia um tom preto aveludado até terminar pouco abaixo dos joelhos. Os cabelos muito negros estavam presos em um coque; e o chapéu preto tinha uma grande flor rubra do lado esquerdo. Carregava uma única mala, marrom escura.
Desgrudei os olhos dela e fui até a recepção, onde o velho encarava a aproximação da moça com a boca escancarada.
– Vim acertar o adiantamento.
O recepcionista mal conseguia ouvir o que eu estava dizendo. Era como se a mulher fosse um ímã a seus olhos. Ela parou diante do balcão e nos cumprimentou com um aceno de cabeça, sem dizer nada, depois aguardou a sua vez. Aquilo pareceu um incentivo ao velho, que de repente percebeu a necessidade de despachar-me o mais rápido possível.
– Sim – disse-me, limpando o suor da testa com um lenço – E vai pagar por quantas noites?
– Cinco noites, por enquanto.
Entreguei-lhe o dinheiro enquanto a mulher assistia a tudo, depois me virei de costas para eles e caminhei rumo à porta de saída.
– Ei, você – chamou a mulher quando eu mudei o passo. Encarei-a com indiferença. E ela continuou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa: – Você tem um cigarro?
– Tenho – voltei a dar-lhe as costas.
Silêncio.
– E então? – disse ela, quando eu já estava à porta do corredor.
– E então o quê? – perguntei, levantando as sobrancelhas.
– Eu quero um cigarro – ela estendeu uma das mãos e eu abaixei a cabeça para sorrir de um modo meio irônico, depois voltei a ficar sério.
– Compre-o – respondi simplesmente, levantando as sobrancelhas.
Ela não pareceu se afetar com a minha falta de modos e eu também não me importava nem um pouco com a imagem que pudesse fazer de mim. Saí para as ruas de Londres. A manhã estava amena e os carros transitavam exibindo todo o luxo da cidade grande, contrastando com a miséria dos mendigos que estendiam as mãos pedindo dinheiro aos pedestres. Caminhei por cerca de vinte minutos, apreciando a vista. Os casarões antigos, as construções modernas, as praças, as belas mulheres.
Entrei na casa de penhores e fiquei espantado com a quantidade de coisas à venda. Um caminho estreito ligava a porta ao balcão, que ficava no fundo da loja: tudo em volta eram objetos. Haviam livros, vasos com plantas, bússolas, estatuetas, ferramentas, cadeiras, jogos de chá em porcelana, abajures, pinturas com molduras antigas, portas-casaco e até uma geladeira e um piano antigo – sobre o qual descansava uma porção de outros objetos. O dono era um homem com pouco mais de quarenta anos e a expressão mais desonesta que eu já vira na vida. Seus ombros eram curvados para frente, o nariz era enorme e pontudo, seus olhos saltados encaravam-me como que perguntando o que é que eu tinha a oferecer. Era um vigarista, nada mais que isso.
– Em que posso servi-lo, meu senhor? – a voz era falsamente educada.
Tirei a arma da cintura e coloquei-a sobre o balcão. O homem encolheu-se um pouco.
– Fale-me sobre essa arma.
Ele a segurou por alguns instantes, franzindo a testa. Examinou-a de vários ângulos, tirou as balas, recolocou-as, depois disse:
– É um revolver calibre vinte e dois – fez uma pausa e empunhou-o na altura da cabeça, com um dos olhos fechados, fazendo mira em qualquer coisa – Eu diria ser relativamente preciso, apesar de não ser tão confiável por já estar um tanto velho... eu precisaria fazer outras avaliações para afirmar com certeza – aqui ele desmontou a arma com a facilidade de alguém que o faz com frequência – Acho que deve ser bastante barulhento.
Era tudo o que eu precisava ouvir.
– Quero trocá-la por algo mais moderno e silencioso – eu disse, enquanto tirava o relógio do pulso e o colocava sobre o balcão – acrescente isso às suas contas.
O homem sumiu por uma porta à sua esquerda e voltou menos de cinco minutos depois, com uma caixa de madeira nas mãos. Ele a abriu com cuidado e mostrou-me o interior.
– É uma pistola calibre quarenta e cinco – disse orgulhosamente, quase sorrindo – Você tem sorte, acabe ide comprá-la. Foi usada na guerra. É silenciosa... bem, na medida do possível; e a mira não deixa a desejar, eu mesmo testei.
Peguei a arma que era preta e reluzente, analisando-a. Exatamente o que eu precisava! Mas algo me dizia que não sairia barata.
– Quanto quer por ela? – perguntei.
O homem sorriu: era o que ele queria ouvir.
– Ora, ora, senhor – disse, daquela maneira irritante e fingida – Entenda que é uma boa arma. Não me agrada a ideia de ter que me desfazer dela tão depressa.
– O revolver e o relógio pela pistola – propus.
Ele riu falsa e ruidosamente.
– Senhor, não brinque com um homem de negócios! Com todo o respeito, essa pistola vale duas vezes o seu revólver e muito mais que seu relógio!
Ajeitei o chapéu e suspirei. Tirei o dinheiro que sobrou do acerto do hotel do bolso interno do paletó e coloquei sobre o balcão.
– Se essa quantia não for suficiente para cobrir a diferença – eu fiz uma pausa e olhei o homem nos olhos –, eu vou embora.
Ele encarou-me com uma expressão de desdém, resmungou alguma coisa sobre não ter nada a perder e aceitou minha oferta.
De volta à rua, fui pego de surpresa por uma chuva fina que começava a cair. Apressei o passo. Com um pouco de sorte, chegaria ao Bela Vista sem ficar ensopado. Só precisava torcer para que a a tempestade que se formava esperasse mais alguns minutos para desabar.
Caminhando com pressa, experimentei a estranha sensação de estar sendo observado. Andei por duas quadras sentindo um formigamento na nuca, como se um par de olhos estivesse pregado nela. Meus sentidos se aguçaram involuntariamente, do jeito acontece quando me sinto em perigo. Eu estava atento a todos os ruídos que me cercavam, sentindo os cheiros mais discretos e vendo detalhes com clareza.
Me virei de súbito quando ouvi passos.
– Você? – espantei-me.
– Sim, eu. E quero saber quem você está pretendendo matar.  

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quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo V


Imediatamente depois de terminar minha pergunta, já me arrependera amargamente de tê-la proferido. A expressão do Sr. Nicholls mudou de um jeito estranho, passando de sono a um esgar de fúria. Seus olhos se estreitaram quando ele sentou-se na cama.
– Alguém que merece morrer – respondeu-me, falando de um jeito baixo e rouco.
Tentei conter a curiosidade, mas ela sempre me venceu.
– E por que diz isso, senhor?
De repente, o rosto do Sr. Nicholls assumiu uma expressão solene e pensativa. Seu olhar ficou distante por alguns segundos. Suspirou e coçou a cabeça, rendendo-se.
– Eu cresci aqui em Londres, numa grande casa do século passado. Minha mãe era uma mulher pobre, mas se casou com um homem rico. Não por interesse, mas porque o homem prometeu cuidar de mim. E eu aprendi a chamá-lo de pai. Ele tinha um filho, Phillip. Crescemos juntos. Mas desde criança Phill gostava de se mostrar superior zombando de mim. “És um bastardo, Vicent”, costumava dizer. E eu, ingênuo que era, não me importava.
– Deveria tê-lo acertado com um gancho de direita, senhor – comentei, fazendo um gesto de punho no ar – Para ensinar um pouco de bons modos!
– É o que eu deveria ter feito, garoto. Mas não fiz. E as coisas só tendiam a piorar. Durante toda a minha infância, não passei de um capacho; e o passatempo favorito dele era humilhar-me. Mas meu pai sempre esteve mais do meu lado que do dele: amava mais a mim, um ilegítimo honesto, que a um injusto sangue de seu sangue. Quando entramos na Segunda Guerra, Phillip foi para o campo de batalha. Mas foi um covarde por toda a vida! Eu não conseguia sequer imaginá-lo sendo leal. Quinzenalmente enviava-nos cartas exaltando seus feitos, elogiando a si mesmo como um desses narcisistas mentirosos. Por volta da terceira carta, duas coisas ficaram óbvias para mim: a primeira era que ele mentia, e a segunda, que mentia muito mal. Eu não contei a ninguém sobre minha desconfiança, pois meu pai ficaria ainda mais desapontado com a desonra do próprio filho.
– Mas senhor, ele merecia ser desmascarado!
– Eu sei; agora eu sei... Enquanto Phillip estava na guerra, conheci uma mulher. Ela era ingênua e pura. Falava tão docemente que eu me sentia hipnotizado por sua voz. Até que, não podendo mais conter minha paixão, eu a pedi em casamento. Alguns meses depois, porém, o filho d’uma mãe voltou da guerra. Meu pai, orgulhoso, fez uma grande festa para recebê-lo. Nesta noite, vi Phill conversando com minha noiva. Ela parecia inquieta e ele já estava muito bêbado, mas não achei que pudesse ser algo relevante. Mais tarde descobri que ele tentara seduzi-la.
– Oh! Que homem sem honra! – levei uma das mãos à boca e balancei a cabeça com força. Depois, imprudentemente acrescentei: – E ele conseguiu?
­– É claro que não, garoto! Veja como fala! Quer que eu lhe desça o braço?
– Não, senhor! Perdoe meu atrevimento! Apenas falei sem pensar!
– Casei-me com ela... com minha pura Dora! – continuou o Sr. Nicholls – E tudo ia bem, muito bem! Minha mãe morreu meses depois, mas eu estava tão feliz com o casamento que a tristeza veio e se foi rapidamente. Meu pai nos deu uma bela casa como presente de casamento. E um ótimo emprego para que eu pudesse dar à minha mulher todo o conforto que ela merecia. Mas Phillip estava furioso e se consumia de inveja por Dorota ter escolhido a mim – aqui ele fez uma pausa dramática – Numa visita à casa de meu pai, ocorreu algo incrível: Marcus Mason decidiu acabar de vez com toda essa guerra silenciosa entre os dois filhos. E ele o fez contando que eu não era um bastardo.
– Quer dizer... quer dizer que o senhor era realmente filho dele? – eu estava tão envolvido pela história que mal conseguia conter a euforia – Que coisa maravilhosa!
– Phillip, que se fizera de bom moço a noite toda, ficou furioso com a notícia. A primeira coisa que disse foi “Você é uma mentira, meu pai! E eu não vou dividir a herança com esse bastardo!”, ao que eu respondi dizendo: “Não me importo com o dinheiro, Phillip! Faça com ele o que achar que deve! Hoje eu sou o homem mais feliz do mundo, porque tenho o pai que sempre quis!” Minha querida Dorota assistia a tudo. Jamais me esquecerei de suas lágrimas enquanto ouvia a discussão.
– Pobre mulher! Nenhuma dama deveria presenciar tal barbárie!
– O que aconteceu a ela naquela noite foi ainda pior – disse o Sr. Nicholls de um jeito sombrio.
– Oh! Não me diga que está morta, senhor!
– Nem brinque com uma coisa dessas, Christopher! Ocorreu que eu saí de casa para tomar um ar fresco e quem sabe beber um pouco. Deixei minha esposa com meu pai. Acontece que Phillip, no auge de sua insanidade, dopou minha Dorota no meio da noite e realizou seus desejos sujos com ela!
Eu não podia conter o horror. Meus olhos se arregalaram e eu voltei a levar a mão à boca. Maldito seja esse homem, que usou de uma mulher indefesa! Eu o mataria com minhas próprias mãos se fosse preciso! Mas não, isso era algo que o Sr. Nicholls deveria fazer para lavar sua honra. E teria toda a minha ajuda.
– Quando voltei para casa, ele já se fora. Há boatos de que nunca mais voltou. Até porque aquele foi o cenário de seu pior crime.
– Sim, senhor! Ele cobiçou a esposa do próprio irmão!
– Não, garoto. Falo do assassinato.
Mas ele acabara de dizer que a mulher estava viva! Ou será que não disse? Eu já estava tão agitado que mal conseguia acompanhar o desenrolar daquela trama. O Sr. Nicholls pareceu ouvir minha pergunta silenciosa, então disse:
– Ele matou o nosso próprio pai antes que este pudesse me reconhecer como seu filho legítimo.
Ele se levantou e pegou papel e caneta no bolso interno do paletó rasgado e manchado de sangue seco, que jazia sobre o chão à nossa frente. Eu assistia boquiaberto, sem conseguir pensar em qualquer coisa para dizer. O Sr. Nicholls escreveu algo, depois entregou-me.
– Este é o endereço da mansão – disse-me, com olhos marejados enquanto eu lia e memorizava – Creio que Phillip já a tenha vendido há muito tempo. Não faço ideia de onde ele pode estar agora, mas é preciso começar de algum lugar. Quero que você vá até lá e veja se consegue alguma coisa, qualquer coisa. Toda informação é bem vinda.
– Sim, senhor. Eu o farei – caminhei até a porta devagar, depois voltei a encarar o Sr. Nicholls – Senhor?
– Ainda está aqui, garoto? – perguntou irritado.
– Eu só queria saber o que aconteceu depois – justifiquei-me, dando de ombros.
– Vendi a casa e larguei o emprego – respondeu-me simplesmente, depois acrescentou: – Ambas as coisas eram perigosas. Phillip poderia nos localizar e tentar terminar o que começou.
Acenei com a cabeça, saí do quarto e corri pelo corredor, depois desci as escadas pulando dois degraus de cada vez. Como nunca antes acontecera em minha vida, eu tinha agora um objetivo. E esse objetivo era ajudar o Sr. Nicholls em sua vingança. Encontraria Phillip Mason e o entregaria numa bandeja de prata a seu assassino, para que a honra de um homem fosse salva.
Eu corria pelas ruas de Londres. A manhã estava bonita, apesar de o tempo estar mudando. Deveria chover em breve, mas minha excitação não abria espaço para preocupações com possíveis tempestades. Resolvi pegar um atalho por uma rua estreita e pouco iluminada. Antes que eu pudesse voltar à luz do dia, uma mão forte puxou-me e empurrou-me contra a parede mais próxima. A voz era furiosa quando disse:
– Enfim encontrei você, seu cretino! 

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Convite



Vem, conte-me seus sonhos
loucuras, medos e planos;
Seus desejos mais insanos
Pr’eu poder realizá-los!

Use teu sorriso como armadura;
Fique sabendo – não há nada que dura
Tanto quanto tua ternura
de sorrir enquanto chora.

Fuja de mim!, dos nomes!,  dos atos!,
só não finja que não me entende.
Sua trama decadente
jamais me enganaria;
É uma falsa tirania:
todas suas inverdades.

Vem, sem nenhum pudor
(quisera eu te conquistar!)
Seu sorriso de rimador,
Dá vontade de amar.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo IV


Eu observava a rua pouco movimentada lá embaixo. Da sacada do segundo andar da mansão, o dia parecia ainda mais cinzento. Grandes nuvens negras pairavam sobre a cidade de Londres. Uma garoa fina parecia engolir os casarões mais distantes da vizinhança, envolvendo-os numa ampla névoa. Com algum esforço, porém, era possível enxergar seus contornos majestosos.
A calçada estava coberta por uma camada de água acumulada durante a noite. E o gramado, molhado pelo orvalho, assumira um tom muito verde – como sempre acontecia nos fins de inverno, quando a neve ia-se embora completamente, deixando um “até logo” e votos de uma boa primavera.
Sentado no meio fio, um garoto de rua encarava a mansão com olhos sonhadores. Não era a primeira vez que eu o via fazer isso, mas era perdoável: de fato, havia muito a se admirar. Minha casa era uma construção imponente de dois andares, pintada de marfim. O jardim fora milimetricamente planejado para ser perfeito: arbustos em forma de animais, canteiros de margaridas, um pequeno lago e um chafariz. Duas grandes colunas dóricas sustentavam a varanda e a sacada do segundo andar. E três vitrais de dois metros de altura eram postos de cada lado delas. Um caminho de pedra começava na calçada e terminava na porta da mansão, transformando-se em uma escadaria. É claro que seria impossível passar diante disso e não se impressionar.
Essa bela residência em Londres, tudo o que havia dentro dela, todas as outras casas em outras cidades e a fortuna depositada no banco faziam parte da herança deixada a mim por meu pai, que descansava em paz há pouco mais de um ano. Como eu era o único filho legítimo e sua segunda esposa também já estava morta – pobre mulher! –, não havia mais ninguém que, por direito, poderia colocar as mãos naquele dinheiro todo.
Minha mãe morrera um dia depois de me dar à luz, em decorrência de complicações do parto. E quando eu tinha por volta de três anos de idade, meu pai decidiu se casar novamente. Os motivos eu nunca soube, apesar de ter algumas suposições. Na verdade, acho que ele nem amava aquela moça. Ela era muito mais jovem e não tinha nem família, nem dinheiro e nem honra: era mãe de um bebê recém-nascido e não sabia sequer quem era o pai de tal criança. Talvez o meu pai simplesmente tenha se compadecido dela, ou estivesse à procura de alguém que pudesse substituir a primeira esposa.
O menino e eu crescemos como irmãos. Eu o amava tanto que chegava a esquecer que o nosso sangue não era o mesmo – não tínhamos sequer o mesmo sobrenome, pois ele herdara o sobrenome de sua mãe. Ainda assim, ele sempre foi meu braço direito em todas as traquinagens que planejávamos e aprontávamos juntos. Meu pai, homem bondoso, permitia que o garoto também o chamasse de pai. Quando éramos jovens, o país entrou na Segunda Grande Guerra. Eu tinha vinte anos e já podia me alistar, mas a idade do meu irmão ainda não permitia que ele fizesse o mesmo. Fui chamado a defender a minha pátria e lutei bravamente para impedir que a escória nazista triunfasse. Atirei em quem deveria atirar; protegi quem deveria proteger.
Meu pai se orgulhava dos meus méritos. Cheguei a ganhar medalhas e ser promovido. Mas o garoto que crescera comigo, antes tão gentil, começou a ter comportamentos estranhos.  Ele sentia inveja de mim e ciúmes do meu pai. Tornou-se rude, malcriado e agressivo. Em 1940, quando completou dezoito anos, ele também se alistou, mas foi recusado. Isso só fez piorar as coisas.
Fui dispensado um ano depois do fim da guerra. Voltei para casa com honra. E houve uma grande festa para comemorar meu retorno. Nesta noite conheci uma moça encantadora. Tinha cabelos loiros e ondulados, olhos castanhos e bochechas rosadas. Falava suavemente e sorria com timidez. Ela era a mais bela de todas as mulheres que eu tivera a chance de conhecer. E posso dizer que, tendo sido soldado, nunca me faltaram companhias. Cheguei a cortejá-la, mas ela acabou me revelando que estava de compromisso com outro homem e iria se casar em breve. E esse homem, por infortúnio do destino, era o meu irmão.
Eu me sentia substituível e infeliz. Primeiro por estar apaixonado por ela; e depois por saber que nunca a possuiria. Nessa mesma época, a segunda esposa de meu pai ficou muito doente. Nenhum médico conseguia diagnosticar a doença que ela possuía. Sendo assim, não havia como medicá-la. Aconteceu que ela morreu meses depois do casamento de Dorota – a mulher que eu amava – com meu irmão, Vicent.
Como presente de casamento, meu pai lhes deu uma de suas casas. Ficava em Colchester e era uma construção modesta, porém aconchegante: toda branca, com um pequeno jardim de hortênsias próximo à porta de entrada. Aceitaram de bom grado. E meu pai também ofereceu um emprego de contador Vicent, na filial de seu banco instalada na cidade.
As visitas do casal à nossa mansão em Londres eram uma grande tortura. Vê-los felizes e apaixonados me deixava enojado. Cheguei a pensar em fazer propostas sujas – das quais não me orgulho nem um pouco – à esposa de meu próprio irmão, mas ela era uma moça de princípios. Em uma dessas visitas, aconteceu algo que ninguém poderia imaginar. Meu pai, homem honesto, pediu a palavra e começou a falar. Contou que nunca fizera distinção entre mim e Vicent, porque éramos ambos seus filhos.
– Sim, meu pai – argumentei, não tendo entendido onde ele queria chegar com aquela conversa toda – Eu também o considero meu irmão de verdade.
A resposta que ele me deu, jamais poderia ser esquecida.
– Isso acontece, meu filho – aqui ele fez uma pausa – porque Vicent é, de fato, seu irmão de sangue.
Nem que eu vivesse mil anos, seria capaz de explicar a fúria que me consumiu naquele momento. De repente, o homem em quem me espelhei durante toda a minha vida, se revelou uma mentira. Ele era uma farsa, um hipócrita sem escrúpulos e desonrado: eu o odiava. Odiava de uma maneira que beirava a loucura. Não consegui pensar em nada, apenas quebrei boa parte das coisas que estavam naquela sala e depois me tranquei no quarto, corroendo-me de maus pensamentos e sentimentos ruins.
Aquela foi a última vez que meu pai viu a luz do dia. Foi assassinado a facadas no meio da noite. Vicent, sem poder provar que era filho legítimo de Marcus Mason, não tinha direito a nada que vinha de meu pai.
E eu, Phillip Mason, herdei todo o dinheiro. Sozinho. 


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Link do Capítulo III (anterior)
Link do Capítulo V (próximo)

sábado, 4 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo III


Eu caminhava apressado pelas ruas silenciosas dos subúrbios de Londres, mesmo sem ter nenhum destino. Era por volta de nove e meia quando saí do hotel. As luminárias lançavam uma luz trêmula e fraca sobre a calçada úmida e escorregadia. Era fim de inverno, o frio se fora quase completamente – mas eu caminhava com as mãos nos bolsos e sentia o rosto arder com o vento gelado. Senti vontade de fumar para afastar a frieza da noite; mas tinha esquecido o maço de cigarros dentro da mala. Engoli a saliva e fiz o possível para afastar o pensamento.
A uma distância de cinco quadras do Bela Vista, encontrei uma casa de penhores. A placa na porta dizia “Aberta até as oito da noite”. Praguejei em pensamento. Quanto mais cedo comprasse o que precisava, mais cedo meus planos estariam concluídos. Teria que esperar até a manhã seguinte.
– Uma esmola para um velho pobre – disse uma voz entristecida às minhas costas.
Virei-me devagar. Para meu espanto, o que vi não foi um mendigo, mas um rapaz encapuzado com seu revólver apontado diretamente para o meu peito. Suas mãos tremiam, fazendo tremer a arma. Pela maneira com que se portava, eu tive a certeza de que era apenas mais um garoto amedrontado, levado ao crime pela desgraça social que as grandes cidades enfrentavam.
– Entregue tudo o que tiver valor.
– Você não vai atirar em mim – eu disse, levantando as mãos por precaução.
– Entregue tudo o que tiver de valor! – repetiu o garoto, gritando com sua voz trêmula.
Arquitetei tudo em minha mente com muita rapidez. Num golpe brusco, agarrei a mão do rapaz e tentei arrancar-lhe o revólver. Medimos forças por alguns instantes até que ele pareceu se lembrar de puxar o gatilho. O tiro pegou de raspão na parte interna do meu antebraço. Soltei um gemido de dor, mas não me rendi. Acertei-lhe um chute na canela com tanta força que ele urrou de agonia. Cheguei a supor que quebrara algum osso. Puxei-lhe a arma de suas mãos no momento oportuno de desatenção. Antes que ele pudesse pensar em defender ou proteger o revolver, eu já o apontava na direção de seu peito. 
Derrotado e estirado no chão, o menino chorou.
– Por favor – implorou – Por favor, não atire em mim!
– Tire a máscara – ordenei.
­– Por favor, sou só um pobre menino! Não tenho mais ning...
– Tire a máscara agora! – gritei, e ele obedeceu.
Era um rapazinho ruivo e muito sardento. O rosto estava sujo, as roupas também. Tinha por volta de quinze anos, não mais que isso – talvez menos. Os cabelos eram um pouco compridos, provavelmente por falta de dinheiro suficiente para o barbeiro. O rosto fino exibia indícios de barba, com alguns pêlos que lhe cresciam no queixo e logo abaixo do nariz. Os dentes da frente eram desproporcionais; e ele arfava de cansaço. Os olhos verdes estavam marejados de lágrimas. O medo era evidente em suas feições.
– Qual é o seu nome, garoto?
­– Christopher, senhor – respondeu choramingando – Christopher Craig, todos me chamam de Chris.
Algo me dizia que aquele era mesmo seu nome. Ele não teria pensado em mentir – e nem se atreveria; não com uma arma apontada em sua direção.
– Você atirou em mim, seu pequeno desgraçado – insultei – Sabe o que isso significa?
Ele voltou a implorar por perdão.
– Cale essa boca antes que eu lhe mate, fedelho – o silêncio foi instantâneo e quase completo, exceto pelos soluços – Muito bem, Christopher. Eu tenho uma proposta a lhe fazer.
– Sim, senhor – respondeu desesperado – Qualquer coisa, senhor! Qualquer coisa! Só não me mate, por favor... Por favor!
– Muito bem. Vou lhe dar duas opções. Na primeira você trabalha comigo: eu lhe pago um quarto de hotel, lhe compro roupas novas e dou-lhe o que comer. E você faz tudo o que eu ordenar – aqui eu fiz uma pausa e encarei o garoto com frieza – A segunda opção é bem mais simples: você morre.
– Não! Não! Não, senhor! Por favor! – ele gritava a plenos pulmões, tão alto que cheguei a olhar por cima do ombro para o fim da rua, certificando-me de que estávamos de fato sozinhos – Eu aceito a primeira opção! A primeira!
– Foi o que eu imaginei – fiz uma pausa para pensar um pouco – Onde é que você mora, rapaz?
– Num abrigo para menores na esquina da Theodor Miller com a Principal, senhor! Fica a duas quadras daqui!
– Sim. Agora levante-se.
Ele ficou de pé num salto e eu o segurei pela gola da camisa, puxando-o para bem perto.
– Escute aqui, Chris – senti o garoto estremecer – Se você me trair, eu vou à polícia. Mostro meus braço e a sua arma; e conto o que você fez. Posso inventar algumas coisas mais. E você vai mofar na cadeia pelo resto dos seus dias infectos de desgraça! Será que fui bem claro?
Os olhos dele arregalaram-se de pânico.
– Sim, senhor!
– Quero que volte para casa agora. Pegue tudo o que for seu e me encontre aqui dentro de meia hora. Ou então...
– Sim, senhor! Eu estarei aqui, eu estarei!
Eu o soltei e senti uma pontada no antebraço, onde o tiro tinha passado de raspão. A roupa estava rasgada e o marrom do suéter adquirira uma cor bizarra e avermelhada. O garoto, que observara o meu auto-exame com expressão assustada, não disse nada quando eu acrescentei:
– E me traga algo para fazer um curativo.
Ele saiu correndo e mancando pela rua, e sumiu na esquina seguinte. Era um bom garoto, só não tivera boas oportunidades. Cheguei a sentir pena dele. E peguei-me a imaginar as dificuldades pelas quais ele deveria ter passado, mesmo com tão pouca idade. Nesse sentido, éramos parecidos. A diferença era que eu era bem nascido, os problemas vieram depois que tratei de crescer.
Meia hora depois, Chris estava de volta. Carregando uma trouxa de pano nas costas, mancando ainda mais, pelo peso que carregava.
– Muito bem, você é esperto. Agora vamos.
Voltamos ao Bela Vista. Já passava das onze da noite. O recepcionista ressonava sobre seu jornal, debruçado-se no balcão.
– Mudança de planos – falei, e ele acordou com um sobressalto – Me arrume um quarto com duas camas.
Ele encarou-me com desdém.
– A diária é mais cara.
– Não importa. Faça o que eu digo.
O recepcionista analisou o garoto com olhos criteriosos.
– Você não está me entendendo – disse ele com sua voz asquerosa – O que você pagou hoje mal dá para uma noite noutro quarto.
– Ótimo – falei – Amanhã pela manhã faremos o acerto dos próximos dias.
– O que houve com o seu braço? – perguntou, apontando para o sangramento.
– Um acidente – respondi, depois acrescentei: – E isso não é da sua conta.
O novo quarto, um pouco maior que o anterior, tinha a mesma organização de espaço. No lugar do sofá azul, entretanto, havia uma segunda cama. Os dois abajures das mesas de cabeceiras funcionavam. E havia um pequeno armário de roupas com duas portas ao lado da escrivaninha. No mais, era igual ao dormitório individual – a mesma pintura dourada e florida desbotando; o mesmo carpete acinzentado e poeirento; as mesmas toalhas de renda branca e encardida.
– Escolha a sua cama, garoto. E depois tome um banho – ordenei.
– Banho, senhor? – pela maneira que respondeu, ficava ainda mais evidente que Christopher não era muito adepto de água e sabão.
– Sim, garoto! Banho! Isso é um problema para você?
Ele hesitou um pouco antes de responder:
– Não, senhor – disse por fim, vencido. Ele revirou as coisas na trouxa e depois pareceu se lembrar – Ah, é. Eu trouxe gaze, algodão e álcool. Desculpe, eu sei que é pouco, mas isso foi tudo o que encontrei.
Você quis dizer “roubou”, não é, moleque?, pensei.
– É suficiente. Obrigado.
– Sou bom com curativos, senhor. Talvez eu possa ajudar.
Eu realmente não tinha nada a perder. Fiz que sim com a cabeça. Ele se aproximou e eu tirei o casaco escuro com muita dificuldade. A dor aumentava proporcionalmente aos movimentos que eu fazia. A camisa branca que eu usava estava completamente vermelha – do cotovelo até o pulso. Rasguei a manga na altura do ombro e arranquei-a. Depois estendi o braço para Christopher, que estava com o álcool preparado. Soltei um gemido e encolhi.
­– Desculpe, senhor.
– Está tudo bem – encorajei-o – Você está indo bem.
De fato, na falta de algo melhor, Chris era um bom enfermeiro. Tinha a habilidade de alguém que já fizera aquele procedimento diversas vezes. Quando ele terminou, o curativo era digno de elogios. Estávamos os dois muito sonolentos e já era madrugada: deixamos o banho para o dia seguinte.
Acordei com a claridade que entrava pela porta da sacada batendo em meu rosto. Não deveria ser mais que oito da manhã. Christopher estava sentado em sua cama, encarando-me.
– O que é, garoto? – perguntei, com a característica voz rouca de alguém que acaba de acordar.
– O senhor fala enquanto dorme – disse-me em resposta.
– É? E daí?
– Bem... é que fiquei curioso. Quem é Phillip, senhor?

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Um brinde ao (des)caso



Como o combinado, trago-lhe novidades.
Sei que não costuma dar muita importância, mas por puro capricho e gosto por alfinetar, achei que valeria a pena dizer.
Quero contar que ultimamente venho sendo dominada por um enorme e amargo desprezo. Eu digo que não me importo, é porque não me importo. Eu digo que está tudo bem, é porque está tudo bem. Eu digo que perdoei, é porque às vezes minto.
Olho para trás e percebo que nunca fui uma só. Eternamente multifacetada, cheia de variações de mim mesma. Mas de repente me tornei tão mutante; tão mutável; tão incerta; tão vaga.
Estou tão anestesiada que há muita coisa que já nem me pegam mais de surpresa. Acho que essa minha mania de desapego beira a covardia. Acabo sendo egoísta sem querer.
Mas sei que aí está você. E que não se apagou por completo.
Quero contar que estou bem, estou feliz – e não sei nem o porquê.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo II

Faziam quatro dias que eu acompanhara Vicent à estação; e o observara com metade do corpo para fora do trem, a acenar com o chapéu até a curva onde não podíamos mais nos ver. Quatro longos dias que se arrastaram tão lentamente que a demora parecia proposital, para aumentar a agonia da minha espera. Ele passaria um ou dois dias na fazenda de um velho amigo influente, para pedir-lhe algum dinheiro emprestado, depois seguiria para Londres.
– Não demore – recomendei, antes que ele embarcasse – E me escreva assim que chegar ao hotel.
– Estarei de volta em breve.
Ele sorriu e me abraçou, mas seus olhos continuaram tristes como tinham estado nos últimos meses. Lágrimas me escaparam dos olhos quando ele me soltou. Eram dez horas em ponto, o trem estava de partida.
– Não quero que você vá.
Ele me ofereceu um lenço que tirou do bolso externo do paletó.
– Dora...
– Não – interrompi, antes que ele recomeçasse seu discurso – Eu sei. Não diga mais nada.
Continuei acenando e enxugando os olhos por um longo tempo, mesmo depois de o trem ter feito a curva, lançando fumaça no ar. Eu me sentia completamente infeliz. E sabia que era perigoso. Mas também não podia negar o quanto tudo aquilo tornara-se necessário.
O gosto do beijo dele ainda estava em minha boca quando sentei-me no banco mais próximo. Alguma coisa me fazia acreditar que meu amado talvez pudesse retornar triunfante no próximo trem; mas esse veio, e se foi – sem trazer-me Vicent de volta.
O grande relógio da torre da estação marcava onze horas e trinta minutos quando eu reuni coragem suficiente para deixar a plataforma de embarque. A manhã estava clara e as aves cantavam alegres nas árvores da praça central, em um coro de sopranos e contraltos graciosamente organizados. Mas eu estava triste demais para conseguir admirar-lhes, como teria feito em outros tempos.
Atravessei a rua e segui rumo à parte baixa da cidade. Era perigoso para uma dama andar desacompanhada por ruas sombrias e escuras como aquelas, em que a noite parecia mais clara que o dia. Mas eu não tinha escolha. Nossa casa ficava exatamente na metade da Rua Paraíso – onde, ironicamente, a fumaça das chaminés dos cortiços e da metalúrgica deixavam o ar pesado, enegrecido e rarefeito. Muita gente morria por decorrência de doenças causadas pela poluição do ar naquele bairro. Pneumonia e asma eram também muito comuns entre os moradores.
Entrei na mercearia que ficava na esquina da rua onde eu morava, onde vegetais murchos e carnes secas se amontoavam nas prateleiras baixas de madeiras. O balcão ficava no extremo oposto do cômodo retangular, cuja iluminação insuficiente se dava através de janelas estreitas no alto das paredes encardidas.
Escolhi algumas batatas e cenouras, apanhei três ovos e passei direto pelas carnes, que estavam rodeadas por uma costumeira nuvem de moscas – nós não tínhamos dinheiro suficiente para pagar por elas há muito tempo. Caminhei até o balcão.
– Muito bom dia – cumprimentei com simpatia ao dono da mercearia. Era um velho gorducho e barrigudo, que passava o tempo todo vestindo um avental sujo do sangue dos animais que criava e matava para vender. Sempre estava mastigando um palito de dente, de uma forma nojenta e grotesca. O grande bigode grisalho e volumoso completava-lhe a aparência desagradável.
– Sim – respondeu-me com grosseria – Vai pagar por isso? – ele tirou o palito da boca e usou-o para apontar para as batatas, cenouras e ovos que eu segurava com certa dificuldade.
– Eu... eu pensei que o senhor pudesse acrescentar essas coisas na conta do meu marido, se não se importar.
O velho passou dois dedos pelo bigode, analisando-me. Depois aproximou-se de mim tão abruptamente que estremeci. Quando ele falou, pude sentir o cheiro de seu hálito apodrecido:
– E quem é o seu marido? – a voz era ameaçadora e gutural, lembrando o rugido de um leão enfurecido.
– Nicholls – respondi, com os olhos arregalados de medo – Vicent Nicholls.
O dono da mercearia afastou-se de mim, pigarreou alto e escandalosamente, depois cuspiu no chão.
– Pois diga a seu marido, Sra. Nicholls, que enquanto não pagar o que me deve – nessa parte, ele já estava gritando e sujando-me de saliva – nada do que está nesse estabelecimento será vendido para ele! Será que fui claro?
Humilhada e abatida, saí de volta à escuridão do dia na Rua Paraíso. Olhei para ela com desgosto. Oito casas amontoadas de um lado; sete casas e a mercearia, do outro. A rua de pedra era estreita e estranhamente lamacenta em algumas partes. A calçada era suja e propícia à proliferação de pragas que transmitiam mais doenças – como se as causadas pela poluição já não nos fossem suficientes. As fachadas dos cortiços de três andares eram iguais, pertenciam ao mesmo dono.  Todas cinzentas e melancólicas. Estavam mortas e tristes há muito tempo, feito seus inquilinos empobrecidos. Não haviam árvores. Os pais não permitiam que suas crianças brincassem na rua. Não havia felicidade.
Mas eu tinha esperanças de abandonar aquela rua de uma vez por todas, para nunca mais voltar. Se Vicent fosse bem sucedido em seu plano, nos mudaríamos em breve para um paraíso de verdade.
Quatro dias depois do incidente com o dono da mercearia, olhando pela janela do segundo andar onde ficava o nosso apartamento, observei o carteiro aproximar-se em sua bicicleta desengonçada. Desci a escadaria correndo a tempo de pegar a correspondência das mãos dele, poupando-lhe o trabalho de colocá-las na caixa do correio.
Eu estava trêmula quando notei a caligrafia de Vicent. Li a carta três vezes para me certificar de que não deixara nada passar. Não havia muito a entender; era curta e direta – bem ao estilo de meu marido. Corri para o quarto, peguei papel e caneta e sentei-me à mesa diante da janela para escrever.


Colchester, 24 de Março de 1950.

 Querido Vicent,
                              A falta que a sua presença me faz não pode ser descrita em palavras. Choro só de imaginar pelo que você está passando. Estou certa de que conhece a minha opinião sobre toda essa loucura que não lhe sai da cabeça. É claro que não entendo o motivo do seu desejo de lavar a alma com sangue. Não vale a pena, meu amado. Sei que acredita estar fazendo a coisa certa; e convencê-lo do contrário é uma tarefa que falhei em realizar. Sendo assim, espero que tudo dê certo: devo lembrar-lhe que preciso do meu marido de volta. As coisas não estão fáceis por aqui também.
Saber que você está mal instalado me entristece. Sei que estamos acostumados a pouco luxo, mas cheguei a pensar que seu velho amigo lhe emprestaria uma quantia suficiente para pagar um hotel confortável. Percebo que estava enganada, apeguei-me a uma esperança vã e ilusória.
Sabendo o que você pretende fazer, só me resta desejar sorte. Espero que volte para mim em breve, Vicent. E que o seu desejo de vingança não esconda a pessoa maravilhosa que você é.
Com muito amor,
Dorota

Peguei papel e caneta para escrever uma segunda carta, dessa vez para outro destinatário. Mas antes reli a designada a Vicent, para me certificar de que parecera realmente convincente. Eu conhecia muito bem o homem com quem me casara. E tinha certeza de que nada poderia encorajá-lo tanto quanto um desencorajamento. Era como se o desafiasse. Seu ego era tão exacerbado que ficaria ainda mais cego pelo desejo de vingança que o consumia.
Mal sabia ele que estava prestes a matar a pessoa errada.

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Link do Capítulo I (anterior)
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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Vem, poetiza-me




É lua cheia; a casa está vazia
exceto pelo luar.
Por isso, querido,
mandei te chamar.
Poeta que não ama
não pode poetizar.
Preciso dos meus versos;
e você, do meu olhar.

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo I

“Hotel Bela Vista”.
Que ironia. Era um dos prédios mais malcuidados que eu já vira na vida: três andares de uma pintura verde musgo desbotada e um letreiro de néon vermelho brilhando acima deles – com as letras O e V apagadas. A iluminação da rua lançava uma luz estranha sobre o hotel, dando-lhe uma aparência ainda mais antiga.
O portão baixo e enferrujado da cerca de metal produziu um ruído irritante e estridente quando eu o abri. O jardim tinha sido engolido por uma variedade imensurável de ervas daninhas. Em alguns pontos podia-se ver amontoados de begônias amarelas espremendo-se umas contra as outras numa tentativa vã de sobreviver sem nenhuma atenção especial.
Quando entrei no hotel, um sino acima da porta anunciou minha chegada. O ambiente era mal iluminado e cheirava a mofo. O piso de madeira do assoalho fazia barulho conforme eu caminhava. A recepção se assemelhava com um imenso corredor um pouco largo. E a decoração era de extremo mau gosto: as paredes tinham a cor da fachada e ostentavam quadros de feias paisagens e fotos dos últimos donos, com suas expressões desonestas. Havia um sofá de dois lugares cor de vinho sob um tapete marrom, em frente a uma lareira antiga. Pela poeira que ali se acumulava, cheguei a pensar que não eram usados há anos: nem o sofá, nem a lareira, nem o hotel. Mais à frente, via-se um balcão espremido contra a parede lateral e uma passagem que dava num corredor sombrio.
O homem por detrás do balcão era um senhor de meia idade, magricela e quase totalmente careca. Tinha uma expressão de nojo, como se ele próprio fosse a pessoa no mundo que mais sentia repugnância pelo lugar. Analisou-me por cima de seu jornal quando eu me aproximei e parei diante dele.
– Você é da polícia? – a voz era grave e rouca, sem entusiasmo.
– Não – respondi, colocando minha única mala no chão.
Ele encarou-me por alguns segundos antes de decidir se eu falava a verdade.
– O pagamento é adiantado – concluiu.
Acertamos para três noites e ele me entregou as chaves. Depois pegou um castiçal e indicou a entrada do corredor.
– Tivemos um problema com a iluminação. Espero que não se importe – ele não falava como se estivesse preocupado com o meu bem estar. Na verdade, muito pelo contrário.
Caminhamos alguns metros e depois subimos por uma escada de madeira cujos degraus rangiam a cada passo. Então o homem parou em frente a uma porta onde estava entalhado o número 9. Abri e entrei, sibilando um “Obrigado” pouco gentil ao recepcionista.
– Caso precise dos meus serviços, use o telefone – disse-me em resposta.
Fechei a porta.
O quarto respirava um ar poeirento e tristonho, como se há muito não visse a luz do sol. Me perguntei qual deveria ter sido a última vez em que alguém se hospedou ali. “Ao menos”, pensei, “é maior que o esperado” – o que não diminuía minha aversão pelo lugar.
O papel de parede dourado e florido desbotara-se em algumas partes, adquirindo um tom amarelo fosco. O carpete era acinzentado e as fronhas da cama também. Haviam teias de aranha na mesa de cabeceira e o abajur, que ali repousava sobre uma toalha de renda, estava com a lâmpada queimada. Do lado oposto do quarto, encostada à parede, havia uma escrivaninha e uma cadeira. A porta do banheiro ficava ao lado da cama e, diretamente à minha frente, um sofá azul escuro e a saída para a sacada.
A noite estava clara. Do segundo andar, a rua quase chegava a ser bonita.
Voltei para dentro do quarto e sentei-me diante da escrivaninha onde ficava o telefone. A gaveta estava emperrada. Com algum esforço e um pouco de paciência, consegui abrir. Dentro dela, encontrei papéis e envelopes; mas não tinha nada com o que eu pudesse escrever. Procurei dentro da mala que eu deixara sobre a cama e encontrei uma caneta.


Londres, 22 de Março de 1950.

Amada Dorota,

                        Cheguei à Londres hoje pela tarde. Há dois dias não nos vemos e já estou sentindo a sua falta. Mas nós dois sabemos a que vim, e era necessário algum sacrifício. Prometo-lhe voltar assim que possível. Minha viagem será breve.
O hotel é terrível. Não pude pagar por nada muito luxuoso, sabe que não somos ricos. Mas não se preocupe, minha amada. Em breve, tudo isso vai mudar. E seremos novamente muito felizes.
Não devo me demorar, nem dar muitos detalhes. Sei que você entende que pode ser perigoso. Saiba que eu a amo, Dora. E que o que farei é por você.
 Do seu, e sempre seu
Vicent

Coloquei a carta e a caneta no bolso do paletó, peguei minhas chaves e saí do quarto. Desci pelas escadas devagar e no escuro. Passei na recepção sem dizer palavra. O recepcionista, de volta a seu posto, nem se importou em levantar os olhos do jornal dessa vez.
Eu também não fiz questão. Tinha alguém para encontrar.
E matar.

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